Ninguém parece querer ser o herdeiro da liberalização da Lei das Rendas que Assunção Cristas impôs em 2012. Aliás, quer PSD, quer CDS, parecem querer esquecer esse passado. Não o evocam nas discussões como exemplo da política que defendem. E nem os mais modernos liberais ou conservadores da ultra direita a reivindicam. E, no entanto, não poderia haver melhor exemplo de política para quem acredita no livre mercado: contratos de arrendamento sem período mínimo de duração, introdução de contratos temporários de meses e rendas a subir de forma exorbitante em paralelo com os despejos da população idosa no centro do Porto e Lisboa, principalmente. Dinamismo e flexibilidade do mercado ou desespero e inacessibilidade?
O CDS deu gás a um Regime de Reabilitação Urbana excecional, que excepcionou regras - de acessibilidade, ruído e sísmicas, entre outras -, liberalizou o Alojamento Local
O CDS, não contente, deu gás a um Regime de Reabilitação Urbana excecional, que excepcionou regras - de acessibilidade, ruído e sísmicas, entre outras -, liberalizou o Alojamento Local e esse mesmo Governo introduziu os vistos gold no regime jurídico português. Funciona assim o neoliberalismo, apropriação dos recursos e da regulação do Estado para promoção e financiamento da iniciativa privada. Isenção de regras, isenção de impostos, insegurança no arrendamento e apoios e facilidades à construção, são os mantras. Quem criou e manteve os mercados que subtraem as casas à habitação permanente ?
Tom Slater chama a isto “agnotologia”, a produção intencional de ignorância
Tom Slater1, investigador e ativista, defensor da regulação das rendas, chama a isto “agnotologia”, a produção intencional de ignorância. Verdadeiros mitos como: i) “a liberalização do arrendamento produz mercados dinâmicos e flexíveis, melhores para os trabalhadores”; ii) “a isenção de impostos e de regras facilita a construção e a reabilitação, que aumentam a oferta”; iii) “o congelamento das rendas foi mau para o mercado de arrendamento privado, logo não se deve nem diminuir, nem estabelecer limites aos aumentos de rendas”; iv) “a criação de mercados sem regras é bom; se limitam o turismo, implodem com a “galinha dos ovos de ouro””;
Com mais de dez anos desta alteração e cerca de quatro décadas desde o início dessa liberalização, o resultado destas políticas está à vista
Com mais de dez anos desta alteração e cerca de quatro décadas desde o início dessa liberalização, o resultado destas políticas está à vista: preços exorbitantes, falta de acessibilidade à habitação, o maior parque habitacional vazio, falta de habitação pública, desequilíbrios entre habitação e alojamento turístico, principalmente no Porto e em Lisboa, pessoas expulsas das cidades onde trabalham,...
Diz Gonçalo Antunes no seu livro sobre os 200 anos das políticas de habitação: “... até recentemente, Lisboa era uma das poucas capitais da Europa Ocidental que mantinha uma camada popular no seu centro histórico” e, por isso, “o choque com a realidade do mercado liberalizado, depois de 2012, não poderia ter sido maior, transformando o tecido social do centro de Lisboa.”2
E observemos o caso de Porto e Lisboa. Foi nestas cidades onde a regulação do arrendamento foi mais forte, não só no congelamento de rendas da Primeira República em 1911, como, bastante mais tarde, quando Salazar decide recuperar a política republicana e de entre guerras do congelamento de rendas nos anos 40. Apenas o Porto e Lisboa tiveram congelamento de rendas por mais do que uma década, o resto do país não, e ainda assim, em Lisboa em 1960, o número de residentes em habitação própria não ultrapassava os 10% e em 1980 era de 18,3%. Foi com a política do crédito bonificado de 1976 que a propriedade aumentou e não com o congelamento de rendas que começou a acabar em 1981: em 2001 a percentagem de proprietários já era de 47,9%, em 2011 de 51,8% e em 2021 é de 50,4%. Lisboa tem, nos dias de hoje, 48% de arrendamento. No Porto, a percentagem atual de proprietários é 49% e de arrendamentos 44%, tendo também sido mais elevada antes da liberalização que se iniciou em 80. Ainda assim, o Porto e Lisboa têm mais de 44% de arrendamento nas suas cidades, o dobro, ou mais, do que ocorre na média nacional.
O Porto e Lisboa, apesar de terem sido as cidades com um congelamento de rendas mais relevante, quase desde o início do século passado - e com uma interrupção entre os anos 20 e os anos 40 - são as cidades com arrendamento mais relevante em todo o país. No entanto, e com a liberalização existente desde 2012, e segundo o censo de 2021, enquanto o arrendamento cresceu 16% em todo o país, no Porto cresceu 4% e em Lisboa apenas 2%, desde 2011. Onde está o dinamismo do mercado liberalizado? Da concorrência? Da oferta? Está no Alojamento Local, nos Vistos Gold, nos Residentes não Habituais, não está na habitação. E não pode estar na habitação, porque a habitação não é luxo, nem é turismo: é uma necessidade básica, tal como a saúde, o trabalho, a educação ou a proteção social. E se existe um conflito que a falta de regras criou, as regras devem voltar a ser fortes para garantir um novo equilíbrio, e aquilo que sabemos, nos dias de hoje, é que onde houve regras mais estritas, foi onde a estabilidade de quem vive e viveu do seu trabalho foi garantida. Os herdeiros de Assunção Cristas pedem mais construção num país com mais alojamentos por habitante, já sabemos o que as fórmulas deles constroem.
Impedir aumentos usurários das rendas e garantir tempos de contrato que permitam estabilidade para aceitar um emprego, para colocar os miúdos na escola ou para outras decisões de uma vida, são essenciais para termos classes populares e também as de rendimentos médios que cá trabalham a viver nas nossas cidades. Não precisamos de voltar ao congelamento de rendas, mas temos de as baixar e temos de regular os posteriores aumentos para que sejam suportáveis pelos rendimentos de quem cá vive. O Partido Socialista tem de deixar, também ele, de ser herdeiro da liberalização, se de facto pretende garantir o Direito à Habitação.
Texto com base na intervenção para o Seminário Europeu da Habitação promovido pelo Partido da Esquerda Europeia no Porto de 20 a 22 de outubro de 2023
Notas:
1 Kallin, H., & Slater, T. (2018). The Myths and Realities of Rent Control. In N. Gray (Ed.), Rent and its Discontents: A Century of Housing Struggles Rowman & Littlefield International.
2 Antunes, G. (2018), Políticas de Habitação, 200 anos, Casal de Cambra: Caleidoscópio
