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OK, põe-me KO

Há 30 anos, 21 de Abril de 1989, polícias (os "molhados") que se manifestavam na Praça do Comércio pelo direito de associação sindical foram brindados com os cães e canhões de água dos seus colegas do Corpo de Intervenção da PSP (os "secos").

Muitos consideraram que a convicção dos confrontos, mais do que perigosa para os estados gripais, não era inócua para a estado de saúde da democracia. Foi a primeira e última vez que assistimos a canhões de água a disparar contra pessoas. Há 6 anos, sindicatos e associações das forças de segurança invadiram as escadarias da Assembleia da República em confrontos muito tensos com os seus colegas. Soaram alertas.

Três décadas depois, já com um associativismo sindical que se devia querer maduro, as imagens dos "friendly fire" de 1989 e 2013 permanecem simbólicas da relevância que as forças policiais agregam em nome da defesa da democracia e do Estado de Direito. Ontem no Parlamento, com alguma previsibilidade, assistimos à tentativa de instrumentalização de uma manifestação supostamente apartidária por elementos da extrema-direita e por um deputado a soldo da sua agenda. O perigo também mora em casa. A Polícia portuguesa tem que ser obrigada a olhar para dentro.

As reivindicações das forças de segurança são indiscutíveis e escapa a qualquer ordem racional que não tenham sido atendidas por sucessivos governos. É imperioso que haja progressão nas carreiras, actualização salarial, pagamentos de subsídios de risco, abertura de concursos para contratação de profissionais, contagem integral do tempo de serviço, melhoria e remodelação das infra-estruturas e do parque automóvel. Mas depois da simbologia associada ao "Movimento zero", percebemos que a maturidade das reivindicações não acompanha a maturidade do movimento sindical.

Este mergulho às profundezas aproxima-se do abismo e não há sinal-ok-de-mão que nos diga que está tudo em segurança. A incapacidade das polícias em impedir que um movimento agite simbologia associada à supremacia branca e à extrema-direita, instrumentalizando as suas legítimas aspirações, é assustadora sobre a sua dimensão de futuro ao serviço dos cidadãos. Que ninguém se convença pela teoria do desconhecimento. Nunca poderia ter acontecido mesmo que até pudesse não ser bem o que parece. Era Doce.

O "Movimento zero" quer ocupar a vaga deixada pela morte do "Movimento dos coletes amarelos" em Portugal. Ironicamente dissuadidos, o ano passado, por enorme dispositivo policial, os coletes amarelos portugueses (que nunca exibiram sinais de ok) devem agora olhar para a sua marcha fúnebre com algum júbilo e esperança. Parece haver sucessão. Só um ano depois, com o enorme "upgrade" de não serem simples cidadãos a assegurar a linhagem. São mesmo forças policiais a ostentarem simbologia inimiga do Estado de direito.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 22 de Novembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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