Foi a partir de Junho último que todos ficámos a saber das atrocidades que a PIDE praticou em Moçambique, então colónia. Devemos ao Público essa notícia e devemos ao técnico da Torre do Tombo a decisão de não se calar. Embora sejamos colegas, nunca me cruzei com ele, a maior parte da minha vida profissional foi em bibliotecas, entre bibliotecários, não em arquivos. São instituições primas direitas, mas não são a mesma coisa, e se os métodos são distintos, os objectivos esses são inconfundíveis. Porque a distinção e separação das carreiras só há relativamente pouco tempo se deu, eu ainda tive uma formação que me permitiria trabalhar numa ou noutra instituição sendo que, aquando dessa separação, eu optei pela biblioteca. Toda esta explicação para dizer que compreendo muito bem a “descoberta” ocorrida na Torre do Tombo. Situações idênticas acontecem também em bibliotecas. Como pode?! As incorporações (i.e., as entradas) podem ser muito volumosas, podem desembarcar nas instituições acolhedoras de forma desordenada (caótica?), as guias de acompanhamento podem ser demasiado sumárias, a organização física pode reflectir as circunstâncias do seu transporte e as agruras da sua vida institucional. No momento da entrada, as mais das vezes, o que importa é um tratamento inicial que limpe e desinfeste esse conjunto permitindo que ele ingresse nos depósitos sem contaminar a documentação que já lá está. Em termos técnicos, a documentação vem de uma zona “suja” e não acede a uma zona “limpa” sem previamente ser desinfestada. O resto se verá.
Esta documentação proveniente de África não veio directamente para a Torre do Tombo. Primeiro, veio de África e não de alguma instituição que se preocupasse com o tratamento físico da papelada. Não veio de um arquivo, por mais tosco que fosse, veio das instalações da PIDE, os agentes da PIDE preocupavam-se com outro género de coisas. Com o 25 de Abril, com a intervenção do MFA, a actividade da PIDE cessou, a papelada sobreviveu e por intervenção de Lisboa, a papelada veio para Lisboa, acabando por ir parar à Biblioteca Nacional por razões de ordem logística. Era a instituição que tinha espaço livre para o acolhimento transitório a caminho do que viriam a ser as novas instalações da Torre do Tombo. Finalmente, o seu destino. Nos depósitos da Torre até este sobressalto.
O interesse desta documentação é tão grande como a sua perigosidade. Perigosidade que começa com a sua transferência súbita para Lisboa, a mando de quem? Perigosidade com os segredos que aguardam uma leitura crítica e um estudo; perigosidade porque mexem com realidades muito próximas – sociedade civil comprometida, agentes da PIDE, familiares de agentes da PIDE, militares individualmente considerados e estruturas, conivências de todo o género nas (então) colónia e metrópole. O que nos reservará a análise e estudo daqueles dossiers?
Em si mesmo, já foi um bambúrrio que a documentação tenha chegado a Lisboa, e que em Lisboa não tivesse sofrido desmandos maiores. Não seria caso único o extravio …. a ignorância e a insensibilidade intercederam pela História. Valeu seguramente a consciência profissional e cívica do técnico da Torre do Tombo assim como da jornalista e a disponibilidade do Público. A existência da documentação tornou-se conhecida do domínio público, não há volta a dar. Mas a academia tem de avançar com propostas de trabalho, não se pode distrair.
A academia tem ali um manancial, haja quem se interesse. O interesse não se esgota na academia, a esquerda tem de tomar uma posição, o Bloco para mim. No mínimo, a condenação das atrocidades agora conhecidas, o reconhecimento de um comportamento bárbaro e inaceitável sobre as populações indígenas e sobre os guerrilheiros moçambicanos, e o correspondente pedido de desculpas. Não basta chocarmo-nos com Gaza hoje ou com o III Reich ontem. Em Moçambique, quiçá noutras colónias, não foi diferente. Como portugueses e defensores do internacionalismo, devemos manifestar a nossa solidariedade a todas as vítimas, sobretudo ao povo moçambicano a quem queremos olhar olhos nos olhos. Só identificando os culpados pela barbárie cometida, castigando-os se ainda for tempo, seremos coerentes com os princípios que defendemos. Não se pode invocar uma agenda cheia para adiar a História; é obrigatoriamente oportuno arranjar espaço na agenda para este caso.