O vendaval passou. Ou será que não?

porJoana Mortágua

19 de dezembro 2020 - 12:44
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O novo projeto apresentado pela extrema-direita não é um choque com o capitalismo, é um choque com os direitos humanos e a democracia que protegem os excluídos.

Esta segunda-feira os delegados do Colégio Eleitoral dos Estados Unidos da América (EUA) confirmaram a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais. Diga o ex-Presidente o que disser, acabaram os recursos judiciais, não conseguirá calar o povo. Mas será que acabou o trumpismo? Que ventos soprarão do Atlântico Norte para os projetos políticos da extrema-direita no resto do mundo?

O futuro é incerto e não pode ser simplificado mas a derrota de Trump deixa espaço para testar algumas variáveis. Houve quem depositasse nela a esperança de uma redescoberta conservadora menos fundada na masculinidade tóxica, com desvantagem para um estilo de liderança despudoradamente boçal. Outros celebraram – com muita razão – o que pode ter sido a derrota definitiva de Steve Bannon, o “agente político mais perigoso dos EUA”, apontado como o caroço ideológico do trumpismo e responsável pela teia internacional dos ultras.

Tudo isso são curiosidades interessantes mas laterais à principal consequência da derrota de Trump, sobretudo simbólica mas importante porque aconteceu no centro do imperialismo: mostrar que a extrema-direita não é invencível nas urnas. Não são as fake news nem os twitter bots quem determina eleições. Há limites para a distopia online, as pessoas ainda são capazes de fazer escolhas com base em acontecimentos reais, acontecimentos como a negligência perante uma pandemia mortal ou o último suspiro de paciência perante a violência policial racista (“i can’t breathe”).

A partir daí é válido questionar se Trump teria perdido as eleições sem esses dois acontecimentos extraordinários. Não existe história no condicional mas aqui não se trata de especular sobre o passado. Donald Trump não só não reconhece o resultado como se prepara para ser o 4.º Presidente da história dos EUA a não assistir à tomada de posse do seu adversário (o último foi em 1869). A ausência de uma transferência de poder institucional e rotineira, o pré-anúncio de uma futura candidatura a arrebatar as massas, tudo letras de um grande neon em Times Square a dizer “isto não acabou aqui”.

Parece injusto. O que começou com a vitória de Trump deveria acabar com a derrota de Trump. Ou será que não?

A chamada “guerra cultural” não é mais do que o embate entre a ofensiva de um projeto político conservador contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a resistência dos democratas

Infelizmente o buraco é mais em baixo. Trump foi um dos líderes de extrema-direita com capacidade para tirar vantagem da crise financeira de 2008 e da quebra de um contrato social baseado na ideia de prosperidade. A crise e as políticas que lhe sucederam desequilibraram ainda mais o jogo da globalização financeira, empurraram as classes sociais em sentidos contrários, aprofundaram a desigualdade entre ricos e pobres, desacreditaram as classes médias da promessa de bem estar e isso fez agitar as águas políticas. A ala reacionária do sistema aproveitou a descrença popular num estado que salva bancos mas deixa pessoas desempregadas e sem-abrigo, Trump respondeu a essa frustração não com uma alternativa ao sistema mas com um vingativo e audível desprezo pelas instituições democráticas.

Esse problema de fundo não está resolvido. O novo projeto apresentado pela extrema-direita não é um choque com o capitalismo, é um choque com os direitos humanos e a democracia que protegem os excluídos. A chamada “guerra cultural” não é mais do que o embate entre a ofensiva de um projeto político conservador contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a resistência dos democratas.

Trump era um sintoma e não a causa do fenómeno “trumpismo”, uma das personificações da extrema-direita mundial que não abandona posições derrotada por afinidade. O que nos leva a outra possibilidade de análise: a ascensão da extrema-direita deixou os liberais e os conservadores democratas não apenas mais à direita mas também mais parecidos entre si no papel de protetores do sistema (o tal que salva bancos e afunda classes sociais).

Nessa linha, os centristas europeus (de Macron a Merkel) parecem querer folgar as costas numa nova relação transatlântica, mesmo sabendo que Biden não promete facilidades em engulhos tão espinhosos como a NATO, a regulamentação e taxação das gigantes digitais ou a guerra comercial com a China. Num patamar acima pairam ainda as lições e as respostas à COVID-19.

Portugal prepara-se para assumir a Presidência do Conselho da União Europeia. O que terá António Costa a dizer sobre a variável mais importante neste debate sobre a ascensão da extrema- direita: quanta esperança em Joe Biden será esperança a mais?

O vendaval passou mas não se sente aquele cheiro bom que anuncia ventos novos.

Artigo publicado no jornal “I” a 17 de dezembro de 2020

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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