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O tal “dia histórico" da Cultura

Sem passar a entender a cultura como um dos pilares do Estado Social ao mesmo nível que a educação, a saúde ou a segurança social, estaremos sempre no campo dos remendos. Ou dos biombos.

Estava tudo planeado pelo Governo para ser um grande momento, mas a urgência em montar a cerimónia do anúncio precipitou um curto-circuito no processo negocial que ainda decorria. Também por isso, o pacote para a cultura aprovado esta semana no Conselho de Ministros, projetado para ser a coroa de glória de Graça Fonseca neste mandato, foi recebido com apreensão generalizada e muitas críticas. As expectativas criadas ao longo de meses e a vontade de enfatizar o caráter “histórico” do empreendimento agigantaram o desapontamento e a distância entre o enunciado de grandes princípios e a perceção da inaplicabilidade e da inconsequência das propostas concretas.

A Ministra vem prometendo há meses um estatuto para combater a precariedade no setor e garantir proteção social, mas até hoje foi incapaz de sequer obrigar a cumprir a lei as grandes fundações

A Ministra vem prometendo há meses um estatuto para combater a precariedade no setor e garantir proteção social, mas até hoje foi incapaz de sequer obrigar a cumprir a lei as grandes fundações cujos Conselhos de Administração têm a presença de representantes do Estado por si nomeados. A 30 de junho do ano passado, no Parlamento, Graça Fonseca admitia, perante a insistência dos deputados, que "o Governo agirá se for provada a existência de falsos recibos verdes e de relações laborais irregulares", salvaguardando que aguardava “as conclusões da inspeção da Autoridade para as Condições de Trabalho” para atuar. A 6 de julho, a ACT notificou a Casa da Música da existência de mais de 30 falsos recibos verdes ilegais que tinham de ser regularizados e em setembro fez o mesmo relativamente a 21 falsos recibos verdes da Fundação de Serralves. As Administrações não respeitaram a decisão da ACT e o Ministério Público levou os dois Conselhos de Administração a Tribunal por violação da lei do trabalho, em processos que ainda decorrem quer no que diz respeito aos assistentes de sala da Casa da Música, quer aos trabalhadores do serviço educativo artes de Serralves. O que fez a Ministra, que tinha prometido ação? Nada. O que fizeram os representantes do Estado nomeados pela Ministra para aqueles conselhos de administração, a saber, Isabel Pires de Lima e Pacheco Pereira (em Serralves) e Teresa Moura (na Casa da Música)? Apoiaram a manutenção da precariedade, a violação da notificação da ACT e o conflito com o Ministério Público para manter falsos recibos verdes já identificados como ilegais pela autoridade inspetiva. Graça Fonseca continua a aceitar tudo isto sem pestanejar.

A maioria dos trabalhadores da cultura passam recibos verdes mas deveriam ter um contrato, nalguns casos sem termo, noutros casos com o termo correspondente aos projetos em que trabalham

Se insisto no exemplo é porque não haverá solução para o problema da desproteção social neste setor enquanto não começarmos por aqui. A maioria dos trabalhadores da cultura passam recibos verdes mas deveriam ter um contrato, nalguns casos sem termo, noutros casos com o termo correspondente aos projetos em que trabalham. Ora, parece ser nisto que o Governo não está disponível para mexer. O grau de naturalização dos falsos recibos verdes é tão grande que o próprio inquérito sobre a realidade do setor incide sobre os “profissionais independentes das artes e da cultura” (sem problematizar esta categoria, que obscurece mais do que revela) e a expressão “falso recibo verde” não aparece uma única vez no primeiro relatório desse inquérito. Seria preciso uma ação massiva de reconhecimento de contratos de trabalho, começando o Estado por dar o exemplo nas instituições que tutela e por exigir o bom exemplo nas que financia. Mas nem isso, que seria ao menos um bom começo, temos em cima da mesa.

No que ao resto diz respeito, grande parte das concretizações das medidas condenam ao fracasso o que até poderiam ser bons princípios

No que ao resto diz respeito, grande parte das concretizações das medidas condenam ao fracasso o que até poderiam ser bons princípios. Por exemplo: faz sentido ter em conta as especificidades do setor na aplicação das diferentes modalidades contratuais? Faz, claro, mas isso não deve ser um alçapão que afaste as regras de proteção contra abusos. Faz sentido prever um subsídio de inatividade para acautelar a condição de intermitência? Faz, mas é absurdo achar que alguém pode ficar três meses sem rendimento para poder beneficiar desse apoio. É uma boa ideia criar formas de converter cachês em dias para garantir uma carreira contributiva? Sim, com certeza, mas tendo em conta que cerca de metade dos profissionais desta área recebe em média menos de 600 euros por mês, estabelecer um patamar médio nos mil euros mensais é deixar de fora a maioria. Devemos melhorar o acesso à proteção social, nomeadamente facilitando o acesso a prestações de desemprego e de cessação de atividade? Sim, mas se a contrapartida for carregar ainda mais nas obrigações contributivas, sobretudo dos trabalhadores independentes que já estão sobrecarregados, ninguém vai aderir a esse regime e ele será um novo fiasco.

Às dificuldades de construir um modelo de enquadramento mais estrutural, somam-se ainda dois problemas.

Falar em retoma no setor da cultura é mais uma aspiração do que uma realidade, pelo que os apoios de emergência continuam a ser necessários e centrais

Falar em retoma no setor da cultura é mais uma aspiração do que uma realidade, pelo que os apoios de emergência continuam a ser necessários e centrais. Só que na resposta à emergência, milhares de trabalhadores da cultura ficaram de fora dos apoios extraordinários porque acumulam trabalho em funções diferentes ou estão registados com códigos de atividade ou de IRS que remetem para categorias genéricas de “outras prestações de serviço”, o que revela a importância de definir de modo inclusivo o âmbito das medidas e de ter em conta as diferenças internas ao setor cultural.

O outro prende-se com a questão da fragilidade das políticas públicas nesta área, que continua a ter um orçamento ínfimo e cujo subfinanciamento não pode resolver-se com iniciativas socialmente regressivas como as “raspadinhas do património”.

Sem passar a entender a cultura como um dos pilares do Estado Social ao mesmo nível que a educação, a saúde ou a segurança social, estaremos sempre no campo dos remendos. Ou dos biombos.

Artigo publicado em expresso.pt a 23 de abril de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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