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O superior interesse do preconceito

Voltaram a ser chumbados na Assembleia da República, os projetos lei sobre a coadoção e adoção por casais do mesmo sexo. Mais uma vez vingaram o preconceito e a hipocrisia.

A pedra de toque dos detratores destes projetos lei é a do superior interesse da criança. Mas analisemos então os principais argumentos usados contra a adoção e coadoção de crianças por casais do mesmo sexo.

“As crianças precisam de um pai e de uma mãe para crescerem harmoniosamente”. Bem, qualquer ser humano precisará de referências masculinas e femininas na sua vida. Mas não necessariamente de um pai e uma mãe. E as famílias não vivem isoladas. Muito menos as famílias por via da adoção. A existência de uma rede familiar de apoio é aliás um dos critérios extensivamente avaliados pelas equipas técnicas da segurança social que fazem a avaliação das candidaturas à pretensão da adoção. Existem tias e tios, primas e primos, avós e avôs. Existem amigas e amigos, professoras e professores. As referências masculinas e femininas são uma constante na vida do ser social que somos. Para além disso, se quisermos denunciar o ridículo deste argumento teríamos de proibir as adoções singulares. Afinal, nestes casos, faltaria sempre um dos géneros supostamente essenciais ao pleno desenvolvimento da criança. No limite, teríamos de proibir as famílias monoparentais. Ai o papá morreu? Retiremos pois a criança já que esta precisa de uma referência masculina!

“Se forem educadas por um casal do mesmo sexo as crianças também vão ser homossexuais”. Este é o argumento cómico. E tão estúpido que nem mereceria a mesma análise que os outros. Mas se o usam, não vamos menosprezá-lo. A orientação sexual não é algo que se ensine ou que se pegue, já agora. Se assim fosse, não existiriam orientações sexuais outras que a heterossexual. Afinal, os gays e lésbicas por esse mundo fora nasceram de casais heterossexuais e a esmagadora maioria deles foram educados por casais heterossexuais. Vai-se a ver e a esmagadora maioria até tiveram referências masculinas e femininas na sua vida.

“As crianças vão ser gozadas na escola”. Como são gozadas porque têm peso a mais (na minha altura até era o contrário. Gozava-se com os 'lingrinhas'), ou porque gaguejam, ou porque são tímidas, ou porque usam óculos (olhó caixa d'óculos) ou até, ironia das ironias, porque são adotadas. Por casais heterossexuais. Penso que é fácil perceber que a forma de combater isto não passa pela proibição da adoção por casais do mesmo sexo, da adoção tout court ou do uso de óculos. Passa sim pela educação e pela consciencialização, na sociedade e nas escolas, de que o que é diferente não é mau ou inferior. É apenas diferente.

“A adoção visa dar uma família a uma criança e não o contrário”. Certo. Até aqui estamos todos de acordo. A questão é que não estamos a tratar de dar uma criança a uma família. Estamos a tratar de estabelecer a igualdade, entre todos os cidadãos, de poderem ser elegíveis para a adoção. Quando um casal heterossexual se candidata à adoção também não se trata de dar uma criança a uma família, mas sim o contrário. Quem avalia a capacidade para a adoção são as equipas técnicas do Instituto da Segurança Social e os Tribunais. Independentemente da orientação sexual de cada um. Como já acontece aliás, nas adoções singulares. Saberão certamente que a adoção singular está prevista na lei portuguesa. Saberão certamente que alguns desses candidatos serão homossexuais. Qual o sentido de uma pessoa poder mas duas não?

Mas se quisermos ir ainda mais longe e ancorar as nossas escolhas em argumentos que não apenas os do bom senso, podemos sempre buscar apoio nas evidências científicas que nos mostram sem sombra de dúvida que as crianças que crescem no seio de famílias homoparentais são em tudo iguais às crianças educadas por casais heterossexuais, com níveis de desenvolvimento e sucesso de integração social semelhantes. Quanto muito, poderão ser crianças mais abertas à diversidade e mais respeitadoras da diferença. Menos discriminadoras e menos homofóbicas. E isso é positivo. Ou não?

No que respeita à impossibilidade da coadoção por casais do mesmo sexo, situação criada pelo governo PS, a hipocrisia com que é usado o argumento do superior interesse da criança é ainda mais gritante. Trata-se de famílias já existentes, de carne e osso. Trata-se de crianças que reconhecem aqueles pais e mães como os seus. Não legalizar a situação destas crianças não vai alterar em nada a situação de facto. Apenas as discrimina e menoriza. Apenas lhes diz que não têm direito à sua família como qualquer outra criança. Apenas as coloca em risco de irem parar a uma situação de institucionalização caso aconteça algo ao pai ou mãe legal. Como se pode alegar ser do superior interesse da criança negar-lhe o direito legal à sua família de facto é verdadeiramente algo que ultrapassa toda e qualquer tentativa de compreensão. E quando a discriminação passa da escola para o parlamento e é o próprio Estado que a impõe, sabemos que vivemos num país que parou no tempo e que a escolha de discriminar uma grande parte dos seus cidadãos é uma escolha consciente ancorada em preconceitos que só podem envergonhar qualquer estado democrático.

Efetivamente o argumento do superior interesse da criança é usado apenas para mascarar o preconceito homofóbico vigente entre os deputados do PSD e CDS. O superior interesse da criança, o seu direito à família, o seu direito a crescer junto de quem as ame e acarinhe é despudoradamente secundado pela conceção conservadora de família e pelo desprezo por quem tem uma orientação sexual diferente da sua.

Mas não desistiremos até que todos os cidadãos tenham os mesmos direitos. E até que o superior interesse da criança vença o superior interesse do preconceito.

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
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