O silêncio que se estranha e entranha no meio de tanto ruído

porFrancisco Louçã

26 de novembro 2014 - 12:25
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Porque o que sinto é que a Justiça falha vezes demais e a Política quase sempre. Porque é que então uma e outra, a Justiça e a Política, se hão-de encarregar de algo tão sério como a Justiça e a Política?

À Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política. A frase, tão puramente bem intencionada, é tantas vezes exibida como máscara de uma enorme hipocrisia. Esconde no mesmo enlevo os que estão aterrorizados e os que rejubilam, os que são amigos e os inimigos, os que esperam que passe o pesadelo e os que anseiam que caia o Carmo e a Trindade.

Ouvindo o refrão, esperei em todo o caso três dias para saber o que se podia saber ou para perceber o que nos deixam perceber. E ouvi mais uma e outra vez esse biombo de sala que é a separação entre Justiça e Política, piedosa declaração mais enunciada por quem a despreza do que por quem a respeita. Falta-me paciência para a ouvir mais uma vez que seja.

Porque o que sinto é que a Justiça falha vezes demais e a Política quase sempre. Porque é que então uma e outra, a Justiça e a Política, se hão-de encarregar de algo tão sério como a Justiça e a Política? Entregar a uma e a outra os seus próprios afazeres parece pouco para sairmos deste turbilhão em que vivemos.

A justiça da Justiça

Começo então pela Justiça. Será ela capaz de proteger a liberdade, de assegurar a responsabilidade e de cumprir uma e outra missão com o respeito de regras iguais para todos? A resposta evidente é que nem sempre é capaz, ou pelo menos que, hoje, ainda não é.

A Justiça é um super-juiz a trabalhar na sua secretária instalada numa montra de loja, protegido por uma vaga penumbra no vidro?

A Justiça é poder filmar da rua as frestas de uma sala onde o inquirido conversa com o seu advogado? Parece que estava nervoso e andava de um lado para o outro.

A Justiça é a comunicação social ser chamada a filmar detenções ou a publicar informações detalhadas sobre um processo que, se existem, só estão nas mãos dos investigadores, e que portanto não podem ser verificadas segundo critérios jornalísticos sérios?

A Justiça é ver um advogado apardalado perante as câmaras de televisão, a ser perguntado sobre o pequeno-almoço ou a culpa culpada do seu cliente?

A Justiça espera pela expectativa cultivada em telejornal para fazer uma declaração tão ritual como o anúncio das medidas de coação aplicadas nos casos mais saborosos?

A Justiça são queixas, evidências e mesmo provas que chegam aos procuradores e que não podem ser investigadas porque faltam peritos informáticos, meios para penetrar nos labirintos do dinheiro, colaboração de entidades bancárias e fiscais e tanto mais?

Pior ainda, à Justiça é exigido o que falta a outras instâncias do Estado: onde falha a supervisão financeira restam os tribunais. Mas os tribunais estão o mais das vezes impreparados para descortinar o jogo mais sofisticado do mundo. Na verdade, espera-se que falhem.

Ora, a Justiça não pode ser nem ansiosa nem frenética, nem reverencial dos poderes nem empolgante. Tem de ter regras.

É nas regras que está o risco da Justiça. A Justiça frequentemente faz à pressa e faz tarde, faz mal e espera que passe, faz pouco e quer que se fale muito. A sua mediatização é uma maldição mas, como não se pode viver sem ela, só sobreviverá se escolher regras para o tempo mediático, o que implica outro comportamento. Esse mundo com regras de justiça exigiria por exemplo que não se detivessem suspeitos simplesmente para elaborar o processo, que não ficassem cinco dias em “identificação” e interrogatório, uns à espera dos outros, e que, havendo detenção, salvo nos casos de flagrante delito, a acusação tivesse que ser apresentada em brevíssimos dias. Exigiria que não fosse preciso deter um Ricardo Salgado para o levar ao juiz para depor, ou qualquer outro nas mesmas circunstâncias, mas simplesmente que fosse intimado, com as regras de segurança necessárias – que não são uma sirene ou uma mota com uma câmara para um direto – para cumprir a investigação que se exige. A Justiça não pode ser a Casa dos Segredos.

E o perigoso gambito que se joga em tantos dos processos destas semanas não se pode albergar no tempo longo do esquecimento. Se não tivermos estes processos julgados em primeira instância em breve, então a Justiça estará a corroer a república, a lavrar a incerteza e a suspeição. O que começou tem de ser terminado. Qualquer prolongamento gerará azedume e descrença.

Não me diga portanto, caro leitor ou leitora, que confia na Justiça. Falta-nos muito a todos para que a Justiça possa confiar em si mesma.

Se não salvar a sua Justiça, Portugal vai ter medo de si próprio.

A política da Política

A Justiça, portanto, só pode ser justa se não estiver entorpecida por proclamações e se buscar e conseguir o critério da investigação tempestiva, da prova rigorosa, dos direitos de defesa sem instâncias condenatórias viciadas na opinião pública. Ou seja, a Política tem de proteger o espaço da Justiça, tanto o campo das suas leis como o da persuasão sobre a sua autoridade legítima. Se uma falha, a outra fenece. Estão a falhar as duas, como é bom de ver. A Justiça e a Política são perigosos e estão perigosos.

Mas a política tem uma responsabilidade que é só dela. E é isso que torna mais estranho este caso Sócrates, até ver. Ele é um dos homens mais treinados na gestão da imagem, da palavra e do gesto. Foi primeiro-ministro durante seis anos, viveu conflitos homéricos, acusações várias, pressões muitas, e percorreu esse tempo como peixe na água (para evitar a auto-metáfora do “animal feroz”). Se imaginarmos Cavaco Silva, que foi primeiro ministro durante dez anos, percebemos como este sobreviveu enquanto havia um único canal de TV e um debate anual no parlamento, ao passo que Sócrates entrou pelo século XXI no centro da política mediática e habituado ao combate de boxe. Ele sabe o que é a precisão e a aceleração. Sabe que quem não informa, desinforma.

Por isso, o silêncio estranha-se e, se se entranha, então marca mesmo. “É melhor seres rei do teu silêncio do que escravo das tuas palavras”, escrevia Shakespeare, habituado a outras vassalagens. Mas o poeta não compreenderia o poder do sinal no tempo do noticiário horário e da palavra vertiginosa que é imagem, porque nesta província a velocidade é que conta. Por isso, habituados como estavam ao relâmpago da sua resposta, aos seus metódicos ajustes de contas, os amigos e próximos de Sócrates, ou os espetadores em geral, só podem estar surpreendidos pelo tempo que se escoa à sua frente. A política está a falhar-lhes.

Só que a Política, a que falha, será sempre o supremo juiz deste caso. Esse julgamento, seja como for, já começou, e começou sem defesa. Sócrates escolheu que o advogado nada dissesse até agora. Cumprimentar os jornalistas e confirmar a prisão preventiva é estranho: falta só saber o que tem a dizer o arguido. Ou podia um comunicado ter anunciado a resposta que o advogado preferiu deixar fora da sua função. Ficou o silêncio.

Acontece que este é um julgamento apressado, ultimatista e dicotómico: ou tudo ou nada. Ou o regime albergava anos a fio esquemas financeiros que se protegiam no governo, ou a montagem que o sugere é ela própria um esquema. Que o silêncio de Sócrates – ou de alguém que falasse por ele – envolva os seus amigos, é um facto notório que demonstra dificuldade em escolher como tratar este assunto e o que dizer ao país. Mas desta vez o assunto é ele próprio. E ele decerto que o sabe. Não é um arguido qualquer, é um ex-primeiro-ministro. Por isso, tem mesmo obrigações especiais.

Em todo o caso, as consequências deste processo podem ser muito mais avassaladoras do que qualquer um de nós pode agora imaginar. Para a política, para os partidos, para as eleições de 2015, para o regime. E mais ainda: se Portugal não recuperar a política como direitos e deveres de todos e como modo de deliberação comum, vamos ter medo do que seremos.

Artigo publicado em blogues.publico.pt em 25 de novembro de 2014

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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