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O Serviço Nacional de Saúde e as eleições

Sem a capacidade para influenciar as políticas do governo à mesa das negociações – aquelas que o PS recusou a partir de 2019, o que resta à esquerda fazer para defender o SNS? Bem, na verdade resta tudo, resta o mais importante: mobilização social!

A maioria absoluta complica o Serviço Nacional de Saúde. Temos mais de um milhão de pessoas sem médico de família, concursos para contratação de médicos e enfermeiros que ficam, sistematicamente, com vagas por preencher porque os profissionais que formamos fogem para o setor privado (atingem taxas 80 a 90% de vagas sem candidato em regiões como o Alentejo ou o Algarve), urgências hospitalares em permanente rotura, listas de espera que não param de crescer. Do outro lado, o crescimento da medicina privada faz corar qualquer outro setor de atividade: entre 2017 e 2020 foram construídos 20 novos hospitais privados, um investimento que ultrapassa os 750 milhões de euros.

entre 2017 e 2020 foram construídos 20 novos hospitais privados, um investimento que ultrapassa os 750 milhões de euros

Durante 6 anos, o Partido Socialista recusou sistematicamente implementar medidas estruturais para inverter a sangria de recursos do SNS para o privado. Por força da esquerda aprovou uma nova Lei de Bases da Saúde, mas sabemos hoje que não tenciona implementá-la. É verdade que reverteu os cortes salariais dos profissionais feitos pela maioria de direita. E também é verdade que atribuiu mais orçamento para o sector, o que permitiu contratar mais profissionais. Ambos revelaram-se paliativos para a crise que a saúde vive hoje, ignorando que atirar mais dinheiro para o SNS sem qualquer mudança estrutural significa maior financiamento aos privados, através das contratualizações público-privadas.

A atual Ministra da Saúde nunca reuniu com os sindicatos médicos! E recusou sempre qualquer atualização nas carreiras de todos os profissionais

A atual Ministra da Saúde nunca reuniu com os sindicatos médicos! E recusou sempre qualquer atualização nas carreiras de todos os profissionais. À proposta do regime de exclusividade feita à esquerda para contrariar o pluriemprego e fixar profissionais no SNS, o PS respondeu com hipocrisia: colocou a proposta nos últimos 3 Orçamentos de Estado, sem nunca concretizar nada para o efetivar. A reforma dos cuidados de saúde primários manteve-se moribunda, com limitações draconianas ao desenvolvimento das unidades de saúde familiar, medida importante para fixar médicos de família.

Se em 6 anos, em minoria, o PS não implementou nenhuma medida estrutural para defender o SNS da predação dos privados, não se espera que o faça agora com maioria absoluta. Os privados podem descansar. Óscar Gaspar e Isabel Vaz podem abrir as suas garrafas de champagne, o rentismo do setor está assegurado.

Sem a capacidade para influenciar as políticas do governo à mesa das negociações – aquelas que o PS recusou a partir de 2019, o que resta à esquerda fazer para defender o SNS? Bem, na verdade resta tudo, resta o mais importante: mobilização social! O poder da rua contra a maioria absoluta dos interesses do negócio privado.

temos duas tarefas fundamentais: fortalecer os sindicatos do setor; lançar movimentos unitários (continuados e momentâneos) pela defesa do SNS

Neste novo ciclo, à esquerda, temos duas tarefas fundamentais: fortalecer os sindicatos do setor, contribuindo para uma crescente dinâmica de confronto e oposição com o governo para defender carreiras no SNS; lançar movimentos unitários (continuados e momentâneos) pela defesa do SNS, o mais possível abrangentes, incluindo profissionais, utentes, cidadãos e figuras públicas da Saúde, capazes de disputar a hegemonia do discurso na defesa dos serviços públicos.

Esta disputa de hegemonia far-se-á contra a maioria absoluta e também contra a direita. Com o aumento da força do extremo-liberalismo no parlamento e olhando para a campanha eleitoral que tivemos, podemos prever já, não só o grau elevado da agressividade neoliberal contra os serviços públicos que aí vem, como o seu conteúdo.

As propostas da direita para a saúde são populistas. Não há hospitais privados vazios prontos para acabar com as listas de espera do SNS, tal como não há milhares de cirurgiões desocupados à espera do cheque-cirurgia

As propostas da direita para a saúde são populistas. Não nos podemos coibir de dizê-lo. Não há hospitais privados vazios prontos para acabar com as listas de espera do SNS, tal como não há milhares de cirurgiões desocupados à espera do cheque-cirurgia para começarem a trabalhar. O setor privado não tem capacidade e não vai resolver o problema. O que a direita pretende é incrementar o “desvio” de recursos do setor público para o privado, agravando ainda mais as incapacidades no SNS e as suas listas de espera, fortalecendo o negócio rentista dos privados. Os privados farão aquilo que lhes compete: aproveitar as rendas do Estado para investirem e crescerem ainda mais, ficando com uma percentagem cada vez maior dos cuidados.

A liberdade de escolha é uma farsa. Difícil de desmontar, é verdade, mas ainda assim farsa. Enquanto o PS, recusando no discurso a farsa, continuar a permitir a predação do SNS pelo setor privado, está, na verdade, a alimentá-la! Quanto mais a crise se agudiza, mais fácil é vender a banha da cobra a todos aqueles que não encontram uma resposta de qualidade no serviço público.

A esquerda perdeu muitos votos, é verdade! Mas não perdeu tarefas ou combates

A esquerda perdeu muitos votos, é verdade! Mas não perdeu tarefas ou combates. Talvez estes até se tenham intensificado, neste novo ciclo que temos pela frente. Será mais difícil, porventura. Mas ninguém na esquerda esmorece quando sabe que tem de sair para a rua com força. Porque a rua é a nossa força. E, diga-se em abono da verdade, a nossa alegria também.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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