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O sabonete de Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa veste hoje a pose de um agregador antinaufrágio nem que, para isso, tenha de esconder da Direita todos os seus barcos salva-vidas.

O regresso do presidente ao comentário político aconteceu na Fundação Luso-Americana e em inglês, circuito convenientemente fechado para que tudo fosse amplificado como se de um segredo se tratasse. Marcelo vintage. Concebeu uma comunicação ao país, enviou um recado à Direita, preparou a justificação para a sua reeleição e matou saudades da TVI com um pleno das televisões em prime-time. Tudo demasiado grave e exótico para ser verdade.

É revelador que as declarações do presidente da República (PR) não tenham gerado o habitual ruidoso vendaval de indignação à portuguesa. Longe estão os tempos áureos da SIC em que Emídio Rangel nos avisava que uma televisão com 50% de share de audiências poderia vender presidentes como quem vende sabonetes. Nos dias de hoje, Marcelo é intocável, domestica o espectro político, reúne com os seus consensos, sibila ao país da serpente. Com naturalidade genuína, faz pelo contraste e sabe o que faz com admirável "savoir-faire" mas, nem por isso, com permanente sentido de Estado. Marcelo amacia, Marcelo é o maior sedutor pós-Sócrates. Marcelo é o sabonete que vende o presidente.

A forma desabrida como o PR realça a "crise interna nos mais importantes partidos" de centro-direita e a fraqueza da "oposição da Direita" a quem augura uma crise nos próximos anos não lhe retira a propriedade da razão de fundo. Basta olhar para a falta de reacção do PSD e do CDS às suas palavras, para se perceber quão profundo é o poço dos que se sentem reféns. Assunção Cristas dribla o assunto, como se a terra pudesse ser plana. Rui Rio reage temerariamente e depois com propostas populistas, sendo necessário esperar vários dias por uma resposta mais veemente do partido através de um dos seus vice-presidentes, David Justino. Mas é nas declarações de Miguel Relvas que sentimos o cheiro a napalm: "Desvalorizar a posição de Estado que o PR demonstrou (...) revela bem o estado de negação em que alguns actores políticos se encontram", salientando o contributo decisivo do PR para "uma oposição forte". Ninguém acredita que Marcelo alguma vez tenha duvidado que, atirando-se ao actual equilíbrio de forças entre Esquerda e Direita, não estaria a investir na guerra interna, permanente e sem quartel dentro do PSD.

Faltam quatro meses para as eleições legislativas e Marcelo finge preparar as presidenciais com a agenda das eleições internas do PSD no bolso. Fica o aviso. Marcelo Rebelo de Sousa é um presidente com mais de 50% de share.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 7 de junho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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