O reagrupamento da esquerda mundial que se seguiu à desmobilização dos grandes levantamentos da segunda década do século XXI em todo o mundo (Ocuppy Wall Street, Primaveras Árabes, Acampadas, etc), colocou de novo na ordem do dia o papel insubstituível da forma-partido na luta pelo socialismo. Um dos grandes problemas da esquerda contemporânea é a incapacidade em articular a possibilidade de uma mudança sistémica com a forma de organização adequada a esse objetivo. Lenine escreveu que “não se podem separar mecanicamente as questões políticas das questões de organização” e Marx e Engels, no segundo capítulo do Manifesto do PC, descreveram os Comunistas como “o setor mais destacado entre os partidos dos trabalhadores de todo o mundo”. Em conjunto isto significa que para derrubar o capitalismo é necessário dar prioridade à construção de um partido com determinadas características.
A génese do modelo de partido para derrubar o capitalismo deve ser encontrada nos debates do fim do século XIX e inícios do século XX da social-democracia alemã, onde se destacava o nome de Karl Kautsky. No fundo, aquilo que Lenine pretendeu fazer no Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR, 1898) foi desenvolver um projeto revolucionário para a transformação da sociedade russa inspirado no Programa de Erfurt (1891) e no modelo centralizado e disciplinado de organização da Social-Democracia Alemã, mas com uma diferença importante. Era preciso, no caso russo, lutar pela liberdade e criar um conjunto de procedimentos organizacionais adaptados à luta contra os métodos repressivos do czarismo e os rigores da clandestinidade. Assim nasceu uma versão da teoria de organização denominada leninista, que, em rigor não foi mais que um desdobramento do legado de Kautsky.
As vicissitudes da revolução russa de 1917, nomeadamente a guerra civil e o cerco imperialista, fizeram com que o partido bolchevique suprimisse as frações no seu interior e eliminasse os partidos da oposição, medidas temporárias que se tornariam definitivas. Com a criação da Internacional Comunista e a consolidação do poder estalinista no decorrer dos anos 20 e 30, aquele modelo de partido (e de sociedade) monolítico foi exportado para todo o mundo por intermédio do processo de “bolchevização” dos Partidos Comunistas, que o tornou universal. Os Partidos Comunistas, de uma maneira geral criados nesta época na sequência do incentivo da revolução russa vitoriosa de 1917, adotaram desde a sua fundação os princípios ultra centralistas e antidemocráticos que tinham vingado no Partido Comunista da União Soviética, ignorando as mais de duas décadas anteriores da sua história, livre destas proibições e recheado de polémicas.
Se o desmoronamento da União Soviética foi também o enterro definitivo do partido de tipo estalinista, não deixa de ser igualmente verdade que as exigências de uma política radical, revolucionária, de esquerda nos dias de hoje também implicam uma reconsideração da forma-partido. As sociedades capitalistas conheceram mutações, as próprias classes sociais mudaram dentro de certas proporções, por isso os movimentos sociais também se diferenciaram. É neste sentido que Bensaid (2002) afirma que é preciso descobrir a forma-partido adequada para lidar com a especificidade dos movimentos sociais contemporâneos. Deixando de lado a versão construída em torno da conceção de ecologia de rede, que resume o papel do partido a uma função conetiva, é possível encontrar três tipos de tradições inspiradoras para a reconsideração da forma-partido.
A primeira vem da tradição operaísta italiana dos anos 70, baseada na tentativa de revigorar o partido político como organização para a luta política, mais do que aparelho administrativo. É um movimento antiautoritário e antiburocrático, que nasce da luta contra o burocratismo do Partido Comunista Italiano, envolvido no Compromisso Histórico com a Democracia Cristã. Para além da aposta na autonomia operária, este movimento realça as diferenças técnicas e de qualificações criadas no interior da própria classe trabalhadora e nas relações de produção pelo capitalismo para tentar encontrar mecanismos de articulação para a luta política dentro e fora da fábrica. Os trabalhos de Hardt e Negri inspiraram-se nesta linha de “formalização da espontaneidade”, atribuindo uma função específica à nova forma de partido, que é a de identificar e ajudar a construir o sujeito político transformador resumido na ideia de multidão (os que lutam pela liberdade e pela emancipação). Lidar com a fragmentação e “construir” a multidão seriam os principais atributos do partido de tipo novo.
Os trabalhos do jovem Lukacs, por sua vez, baseiam-se na tradição de Kautsky (e mais tarde de Lenine) que confere ao partido uma função de mediação, entre teoria e prática, entre organização e espontaneidade, entre presente e futuro. O partido é a “fração mais destacada”, ou a “parte militante” do proletariado, que ajuda a difundir conhecimento e a construir o movimento dos trabalhadores. Nem partido, nem movimento dos trabalhadores são o proletariado, que é um sujeito político, uma referência, com funções históricas definidas para o derrube do capitalismo e a construção da sociedade socialista. Neste processo, a difusão do conhecimento socialista faz-se de forma desigual pelas diferentes camadas do proletariado, uma vez que esse conhecimento resulta da superação da consciência de resistência “trade-unionista” (sindical) aos excessos exploradores do capitalismo, acrescentando-lhe o projeto socialista de sociedade.
A terceira contribuição é a do moderno Príncipe de Gramsci, uma tentativa gerada na sequência de reconstrução da classe operária italiana dizimada pelo fascismo e pelos erros de orientação da Internacional Comunista no designado “terceiro período” (anos 20 e 30). Resumidamente e como forma-partido, o moderno Príncipe é parte de um mecanismo de ativação da hegemonia junto das “classes subalternas” pelo proletariado. Neste sentido, o partido concebido por Gramsci não procura a identidade e a homogeneidade, mas sim lidar com a fragmentação e a conflitualidade para atingir sínteses expansivas e totalizantes. É também o agente que permite superar as antinomias entre hegemonia e resistência, guerra de posição e guerra de movimento, entre estrutura económica e domínio cultural ou entre senso comum e bom senso (conceitos típicos da linguagem gramsciana).
Nos dias de hoje, o verdadeiro debate em matéria de organização política não é a favor ou contra a forma-partido, mas muito mais o de encontrar o tipo particular de partido para ajudar os movimentos sociais a crescer e a confluírem para objetivos comuns. O moderno Príncipe de Gramsci, especialmente concebido para trabalhar com as diferenciações das “classes subalternas” na busca da hegemonia de um bloco social liderado pelo proletariado, pode ser uma boa alternativa, se ela conseguir incorporar também preocupações do partido composicional “para formalizar a espontaneidade” e do partido mediação capaz de identificar o sujeito político. Não é possível ir mais longe em termos de relançamento da luta pelo socialismo sem recolocar o debate em torno da forma-partido adequada à consecução desse objetivo.
Artigo publicado em “Raio de Luz” a 30 de setembro de 2024