O que um ano de liberalismo à Milei trouxe aos argentinos

porVicente Ferreira

10 de janeiro 2025 - 16:26
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A estratégia liberal de Milei para conter a inflação tem consistido em promover o colapso da economia e aumentar os níveis de pobreza e desigualdade. Descrever esta experiência como um sucesso é revelador das prioridades de quem o faz.

Há um ano, o resultado das eleições argentinas foi visto com surpresa por uns e entusiasmo por outros. A eleição de Javier Milei, que se descreveu como “anarco-capitalista” e fez campanha com uma motosserra para simbolizar os cortes que pretendia implementar no Estado, foi aplaudida pelos investidores internacionais e saudada por segmentos importantes da direita devido às profundas reformas prometidas. Um ano depois, é importante olhar para o que têm sido os resultados desta estratégia.

Depois de ter sido eleito, Milei não perdeu muito tempo a pôr em prática o seu plano. Os cortes no orçamento do Estado afetaram quase todas as áreas, da Saúde à Educação e à investigação científica, e incluíram o despedimento de milhares de trabalhadores do setor público. Além disso, levou a cabo um conjunto de reformas abrangentes com o objetivo de liberalizar a economia, promover a iniciativa privada e atrair investimentos.

 

Cortes nos serviços públicos
Cortes nos serviços públicos

 

Os cortes parecem ter sido suficientes para a Argentina passar a registar um excedente orçamental, depois de, no ano passado, ter tido um défice de 4,4% do PIB. Por outro lado, a taxa de inflação mensal tem vindo a diminuir e situa-se agora nos 2,4%. Estes números valeram a Milei elogios de instituições como o FMI e de uma parte da imprensa internacional. Por cá, o Instituto +Liberdade publicou um artigo em que se elogiam os “sinais de recuperação” visíveis em indicadores como o índice de produção industrial e o volume das exportações, ainda que se admita que a “situação social permanece sensível” – o que é um forte candidato a eufemismo do ano.

O problema é que nem todos os números contam uma história tão positiva. A taxa de pobreza, que andava em torno dos 40% quando Milei tomou posse, disparou ao longo do ano e atingiu uns impressionantes 52,9%, o que significa que, só este ano, 3,4 milhões de argentinos foram empurrados para a pobreza. Dois terços das crianças no país vivem sob pobreza, o que não impediu o presidente de cortar o orçamento destinado ao apoio aos mais vulneráveis, incluindo através da distribuição de alimentos em cantinas comunitárias.

 

taxa de pobreza na Argentina, 2024
taxa de pobreza na Argentina, 2024

 

Outro grupo especialmente afetado pelos cortes de Milei são os pensionistas. A fórmula de atualização das pensões definida pelo governo impôs uma perda de poder de compra significativa para os reformados. Quando o Congresso tentou compensar esta perda através de um aumento extraordinário, Milei vetou a lei e chamou aos congressistas “degenerados orçamentais”.

Os cortes no orçamento da Saúde estão a colocar em causa a capacidade de prestar os cuidados necessários à população. A agência Reuters dá conta do desinvestimento na prevenção de doenças graves e da redução dos medicamentos disponíveis para o tratamento dos pacientes.

O investimento em ciência e tecnologia colapsou e atingiu os níveis mais baixos desde a restauração da democracia no país, em 1983. Além dos cortes no financiamento das instituições públicas, também houve cortes salariais e uma redução acentuada das bolsas de estudo, o que, de acordo com as instituições do setor, está a incentivar a emigração dos jovens nestas áreas.

Com os cortes nos subsídios do Estado à energia e aos transportes, o custo dos serviços públicos disparou. De acordo com um relatório do Interdisciplinary Institute of Political Economy, o valor que uma família de classe média gasta, por mês, em eletricidade, gás, água e transportes públicos passou de 30,105 pesos no final do ano passado para 141,543 pesos em setembro deste ano. A poupança para os cofres do Estado foi atingida à custa de um agravamento das condições de vida para a maioria dos argentinos.

Face a este cenário desastroso, há quem argumente que estas eram medidas dolorosas mas necessárias. Só que 2024 está longe de ser um ano de sucesso para a economia argentina. Muito pelo contrário: na primeira metade do ano, a economia contraiu mais do que se esperava e a Argentina entrou em recessão técnica. O desemprego, que se encontrava nos 6,1% no final de 2023, aumentou para 8,2% até outubro deste ano. A austeridade agravou substancialmente a crise em que o país se encontra mergulhado.

 

recessão económica 2024
recessão económica 2024

 

amnistia fiscal aprovada por Milei encorajou os mais ricos do país a depositar as poupanças que detinham em offshores ou guardadas em casa, o que atraiu 18 mil milhões de dólares para os bancos argentinos e permitiu acumular reservas de moeda estrangeira. No entanto, as reservas continuam a ser insuficientes para cumprir os pagamentos da dívida e o país continua dependente do FMI.

Em simultâneo, a desigualdade agravou-se: o índice de Gini, que mede a desigualdade de rendimento num país e que varia entre 0 (igualdade máxima) e 1 (desigualdade máxima), aumentou para o valor mais alto desde 2005. A austeridade provocou uma quebra de rendimento e poder de compra bastante mais acentuada para quem ganha menos, aumentando o fosso para os mais ricos.

 

Índice de Gini, Argentina, 2024
Índice de Gini, Argentina, 2024

 

A estratégia orçamental socialmente repressiva é conjugada, sem grande surpresa, com o negacionismo climático. Milei cortou o orçamento destinado à proteção ambiental, tentou remover regulações que definem áreas protegidas e aprovou o Regime de Incentivo a Grandes Investimentos, desenhado para acelerar a exploração de recursos naturais. Ao longo do último ano, têm sido várias as tentativas de reduzir regulações e entraves que permitam ao Estado leiloar terrenos pertencentes a comunidades indígenas para a exploração de cobre e outros minérios por parte de empresas privadas.

Há problemas estruturais que a economia argentina enfrenta há décadas e que não podem ser atribuídos à gestão do último (ou dos últimos) anos. No entanto, a estratégia liberal de Milei para conter a inflação tem consistido em promover o colapso da economia e aumentar os níveis de pobreza e desigualdade. Descrever esta experiência como um sucesso é revelador das prioridades de quem o faz.

O economista argentino Matías Vernengo resume os problemas da estratégia de Milei: “O desemprego e a pobreza estão a aumentar e a austeridade está a ter um impacto social terrível – mas também temos de olhar para o futuro da economia, já que o presidente Milei está a cortar significativamente o investimento público, o que tem um efeito bastante negativo no longo prazo. […] Estão a construir um país que só é rentável para alguns”.

Artigo publicado em Ladroes de Bicicletas a 13 de dezembro de 2024

Vicente Ferreira
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Vicente Ferreira

Economista
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