Escreveu Mosab Abu Toha, o poeta palestiniano e bibliotecário de Gaza, que um lar:
"É a sombra das árvores no caminho para a escola, antes de serem arrancadas"
"É o retrato a preto e branco do casamento dos meus avós, antes de as paredes desmoronarem"
"É o forno onde a minha mãe cozia pão e assava frango, antes de uma bomba reduzir a nossa casa a cinzas"
Um lar é onde cabe tudo o que está a ser retirado aos civis em Gaza.
Jorge Moreira da Silva, diretor-executivo da UNOPS, dizia há dias já não encontrar adjetivos para descrever o que se passa em Gaza, que neste momento já não vivemos uma crise humanitária, mas uma crise de humanidade.
Mais de 35 mil pessoas foram assassinadas, mais de metade mulheres e crianças, mais de 100 mil crianças órfãs, dezenas de milhares de pessoas feridas e amputadas. O que está a acontecer em Gaza tem nomes: ocupação, genocídio, limpeza étnica.
Corpos subterrados, valas comuns, crise sanitária profunda com corpos em decomposição nos escombros.
Um cheiro a carne podre insuportável.
São estas as descrições de quem está em Gaza.
Falta tudo, alimentos, medicamentos, água.
Às bombas, Israel usa a fome como arma de guerra.
Israel está a levar a cabo uma nova Nakba com a cumplicidade dos governos europeus.
O serviço de Ação contra as Minas da ONU estimou que, no final de Abril, havia 37 milhões de toneladas de detritos em Gaza e que, pelo menos, 10% dos engenhos disparados não explodiram, pelo que estão misturados.
Há 14 anos, eu entrava pela primeira vez em Gaza no primeiro grupo que conseguiu romper o bloqueio total imposto por Israel. Entrei por Rafah onde hoje estão mais de um milhão de pessoas deslocadas a morrer à fome, onde assistimos a imagens de horror e inferno e onde há poucas semanas as tendas dos refugiados foram bombardeadas depois de lhes terem dito que estavam em segurança.
Desde 7 de Outubro já poucas paredes sobram, hospitais e escolas incluídos.
Esmaga-nos a total impunidade de um governo que não olha a meios para aniquilar um povo.
É a ajuda humanitária que não chega porque Israel não deixa e, quando deixa, seleciona. À porta de Rafah acumulam-se as filas de camiões parados. Impedem a entrada de serviços e materiais médicos, de materiais para construir cozinhas, de paletes carregadas de água porque, segundo eles, podem ter utilização dupla, civil e militar. Impedem a entrada de carregamentos de croissants de chocolate porque, segundo eles, croissants de chocolate são um luxo e não ajuda humanitária.
Estes são os relatos da Cruz Vermelha que na fronteira tenta organizar a entrada e distribuição de bens.
Quando o Tribunal Internacional de Justiça decretou que o Estado de Israel teria de tomar medidas para evitar o genocídio, o que aconteceu? O Estado de Israel diminuiu a entrada de ajuda humanitária.
Quando o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandato internacional de captura contra Netanyahu, o que aconteceu? O Estado de Israel mandou disparar sobre tendas de refugiados em Rafah.
Tudo isto com a cumplicidade da comunidade internacional.
Que nunca se confunda um regime colonial e sionista, como o do governo israelita, com o judaísmo e não se permita que as atrocidades e crimes cometidos pelo regime sionista possam alimentar discursos anti-semitas.
E que nunca se permita também que quem quer propositadamente fazer essa confusão a use como desculpa para não agir perante um genocídio em curso.
Perante os assassinatos indiscriminados com recurso a armas europeias, esperaríamos dos países europeus uma voz firme a favor do embargo de armas a Israel, esperaríamos isso do governo português.
Perante toda a evidência trazida pelo Tribunal de Haia, só poderíamos esperar que, à semelhança da declaração de intervenção apresentada a 10 de Julho de 2022 no processo da Ucrânia contra a Federação Russa, vários países se tivessem associado à ação da África do Sul, esperaríamos isso do governo português.
Perante os discursos recorrentes em relação à solução de dois Estados, esperaríamos que os governos europeus que ainda não o fizeram reconhecessem o Estado da Palestina, esperaríamos isso do governo português.
Para haver solução de dois Estados é preciso que se reconheçam ambos, senão são só palavras ao vento.
O Bloco de Esquerda deu entrada de projectos de resolução para o reconhecimento do Estado da Palestina e para que Portugal se associe ao processo de África do Sul. Esperamos sinceramente que não exista uma maioria de cúmplices e que sejamos acompanhados pela maioria na libertação do povo palestiniano.
Declaração política na Assembleia da República a 12 de junho de 2024
