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O primeiro António e o cidadão Costa

António Costa anulou as presidenciais. Encostado à candidatura-chapéu-de-chuva de Marcelo Rebelo de Sousa, recusando o apoio à candidatura da militante socialista Ana Gomes, Costa remodela, até na saúde, em pleno reacendimento da pandemia e nem hesita em exonerar.

Corre para as legislativas. Independentemente das escolhas dos novos nomes, a salvaguarda de Marta Temido e o reforço de Pedro Nuno Santos são um banho de realidade que seca alguma das gotas da chuva dissolvente que se abatia sobre Costa. Mas, lamentavelmente, o primeiro-ministro António que se cinde entre figura de Estado e o cidadão Costa, já havia convocado o seu próprio dilúvio pessoal esta semana.

Não fosse António Costa a mesma pessoa que - no momento em que o então ministro da Cultura, João Soares, prometia dois "salutares estalos" a reputados jornalistas da praça - assegurava que os membros do Governo "nem à mesa do café podem deixar de se lembrar que são membros do Governo", pensar-se-ia que estaríamos perante um caso de dupla personalidade de Estado. Depois do episódio do "off" sobre os médicos de Reguengos (justo ou injusto, uma insólita "punhalada"), já a presença na lista de honra de apoio à recandidatura de Luís Filipe Vieira à presidência do Benfica é muito mais do que um erro político grosseiro e infantil.

Para além de permitir levantar um manancial de suspeições sobre as lógicas de poder e relações entre as figuras de Estado e fontes de influência, subscreve a ideia de que é possível vermos um primeiro-ministro a apoiar publicamente (e numa comissão de honra) alguém que, para além de estar envolvido em vários processos judiciais com investigações em curso e acusações eminentes (alguns deles com tentativas de interferência no poder judicial), está efectivamente relacionado com o assalto realizado ao sistema financeiro português, nomeadamente ao BES e ao Novo Banco, com valores em dívida que ascenderam a 760 milhões pagos por todos os contribuintes. É absolutamente incompreensível, irresponsável e, no contexto actual, alimenta o fogo dos piores populismos. António Costa não estava só obrigado a um princípio de prudência. Estava obrigado a um princípio de vergonha.

Num último golpe de miséria e quando se pedia que António Costa se retirasse da lista pelo próprio pé, é Luís Filipe Vieira que rescinde com o primeiro-ministro, como o exterminador implacável que escolhe o lugar, o momento e a hora. Horas antes da audição entre o primeiro-ministro e o presidente da República, que já tinha manifestado intenção de abordar o caso com Costa, o presidente do Benfica encarrega-se de fazer sair o primeiro-ministro pela porta dos fundos. Não havia pior forma de António Costa entrar e sair disto. Resta saber a razão de tanta ingenuidade. Ou se a razão é simples, sociológica e atávica e se funda neste sentir de alguns, nesta coisa meia impune de se ser do Benfica em Portugal.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 18 de setembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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