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O poder nuclear de Marcelo

Marcelo, atado de pés e mãos, sem todas as letras mas solto em palavras-guia, não lança qualquer ultimato. Puxa dos galões e, à semelhança do que fez em Dezembro do ano passado ao dissolver o Parlamento, relembra que nele reside o poder nuclear do sistema.

O fim tem dois limites. O que poderia ter sido apenas mais uma formal tomada de posse de um Governo transformou-se num aviso à navegação de António Costa e no alerta, lançado por Belém, que tenta contrariar o seu aparente apagamento político num ciclo de quatro anos de maioria absoluta do PS.

As notícias sobre a irrelevância política do presidente da República (PR) neste ciclo legislativo foram manifestamente exageradas. Marcelo, atado de pés e mãos, sem todas as letras mas solto em palavras-guia, não lança qualquer ultimato. Puxa dos galões e, à semelhança do que fez em Dezembro do ano passado ao dissolver o Parlamento, relembra que nele reside o poder nuclear do sistema. O fim tem, agora, dois limites: o término da legislatura em 2026 e uma eventual saída antecipada de António Costa do Governo.

O jogo de palavras entre Belém e S. Bento marca o regresso da política ao país após anos de pandemia, da dissolução do Parlamento que levou o país para eleições, do atraso na tomada de posse face às irregularidades na votação no círculo da Europa e da guerra na Ucrânia que, ainda que lavre, não pode impedir a política nacional de caminhar para o ferro e (sem) fogo. Tudo isto, ainda sem que se perceba se o PSD diz presente. O regresso do PSD à política poderá ser a grande novidade da política nacional após anos de semiausência mas, para que isso aconteça, o decurso do tempo tem de passar a ser significante para os sociais-democratas. Mesmo num contexto de maioria absoluta, o PSD não se pode dar ao luxo de desligar ainda mais do país, adiando-se em adiamentos, sob pena de não ter força nem estar pronto a responder por si quando Marcelo equacionar o seu poder nuclear.

O segundo irritante numa semana (o primeiro havia sido o anúncio da composição do Governo) não é um ultimato. Não é sequer um sequestro de Marcelo ou do povo ao primeiro-ministro, nem revela que há um homem providencial, António Costa, sem o qual o PR não concebe viver. Significa que os sinais de que Costa está mesmo a equacionar a sua saída antecipada do Governo são verdadeiros. Materializa a ideia de que Marcelo nunca se deixará arrastar para o campo da irrelevância, como aliás decorre do exercício das suas funções e da sageza habitual das suas palavras. Joga com a certeza de que o mandato do PR termina meia dúzia de meses antes do mandato do Governo e que tudo terá de ficar decidido antes de Marcelo sair (curioso será se a Europa "pedir" Costa e Marcelo se opuser com o anátema de convocar eleições antecipadas). Mas, penosamente, corre o risco de regressar - sem que se dê por isso - àquele tempo que a geringonça se encarregou de destruir, quando se raciocinava pela lógica de que as eleições servem para eleger um primeiro-ministro e não um Governo no quadro parlamentar. A fulanização do vencedor das eleições voltou à política, carregada às costas por uma maioria absoluta.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 1 de abril de 2022

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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