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O papel da história na violência

O título que dou a esta crónica é um trocadilho com o título do texto de Frederich Engels, “O Papel da Violência na História”. Mas também podíamos chamar-lhe “Uma história de violência” se nos inspirássemos no filme de David Cronenberg.

I

A violência é a primeira e última razão do Estado, sendo que a hegemonia ideológica faz o seu papel enquanto pode ir fingindo que não é violência.

Quando o Estado se torna num covil de vulgares aldrabões, de servis cúmplices de “assalto à mão armada” por parte de uma máfia dos interesses da alta finança delegados em tecnocratas sem escrúpulos éticos e ideologicamente capturados por doutrinas criadas pelos Doutores a soldo (ver Harvard em “Inside Jobs”) os argumentos políticos do poder descambam obrigatoriamente na violência mais ou menos assumida mais ou menos sofisticada, mas toda ela dirigida ao cerceamento dos direitos e liberdade fundamentais dos cidadãos.

Esses direitos estão constitucionalmente garantidos capacitando-os para resistir e legitimam a própria revolta perante a injustiça estrutural que os assola e contra o violento esbulho dos próprios proventos do seu trabalho de muitos anos e das comparticipações legais para assegurarem uma reforma ou uma pensão socialmente justa.

E ainda mais quando o governo proclama a necessidade de reduzir, pela chantagem da dívida, o Estado Social a uma associação de Misericórdias. A resposta é só uma: o Estado social é a base material da democracia. Não se discute, como não se discute a democracia, como não se discute a vida nem a liberdade. Há direitos adquiridos que só com violência brutal e ilegítima podem ser sonegados.

E o Estado, na sua representação governamental está pronto para isso com as costas quentes pela troika e pela Merkel e por todos os assassinos de voz meiga que vão acorrendo a compor o exército de mercenários dispostos a vender caro o chupismo que praticam com ligeireza e eficácia.

II

As coisas estão a aquecer e isso não surpreende nenhum de nós. O BE na sua VIII Convenção deixou claro que a política da dívida sobre dívida para pagar a dívida destrói ainda mais a mísera economia deixada pelo Cavaco e Sucessores, no bloco central de interesses, esmaga os cidadãos e torna a democracia numa caricatura de si mesma; pior ainda, num argumento para a sua própria liquidação.

A guerra é económica, financeira, social, política. Ela é imposta pela agressão da troika e pelos colaboracionistas de Passos Coelho e sua sombra sempre atrasada do Tozé “Segurem-me se não eu bato-lhe”.

Os movimentos sociais e a cidadania em geral, desde o 15 de setembro que estabeleceram uma linha para detrás da qual deram a entender que não estão na disposição de recuar.

O que se passou no fim da manifestação que coroou a extraordinária jornada de luta que constituiu a Greve Geral Ibérica e as greves parciais pela Europa Unida, se não foi assemelhou-se muito a uma manobra da administração interna para tentar ganhar tolerância para a criminalização futura do movimento contestatário às políticas do governo.

O “papel da história na violência” ajuda-nos bem a compreender e combater as manobras policiescas mais sofisticadas, pensam eles os chefes da polícia.

As associações sindicais das forças policiais foram uma conquista da democracia que os polícias impuseram com a sua luta corajosa durante anos para não dizer décadas.

E têm um papel importante na própria relação com os cidadãos mas essencialmente na capacidade reivindicativa que justamente lhes assiste.

Mas a polícia “democrática e amiga do cidadão” colapsa perante a imposição hierárquica porque é da hierarquia que ela vive.

A hierarquia funciona com um único objetivo: manter “a populaça” nas baias. E os polícias agem em função disso. A sua preparação e a dinâmica da ação, recebida a ordem, torna-os insensíveis aos objetos em que de súbito se tornam as pessoas que tinham à sua frente e que é preciso dispersar, espancar, matar se vier a calhar.

As equipas especiais, formadas sob as técnicas em vigor e na moda usadas pelo paradigma da violência e, pasme-se, da democracia, que são os EUA mimam, com mais ou menos jeito, Guantanamo e Abu Grahib, as cadeias espalhadas pelo mundo da Polónia, à Síria,passando pela Hungria, para onde a CIA enviava ou envia os prisioneiros que é necessário amolecer e depois vergar, experimentam técnicas novas que afinal são velhas, usadas pela inquisição,a CIA, a Pide, o KGB, etc.

O esboço de tortura, na verdade formas bem reais de tortura descritas nos manuais, ainda tem como travão a rejeição geral imposta pelo 25 de Abril.

A atuação da polícia naquele fim tarde das duas uma: ou se tratou de total incapacidade do comando para avaliar a situação redundando em total desrespeito pelos cidadãos e cidadãs que enchiam o largo fronteiro à Assembleia da República e numa afronta violenta ao seu direito de manifestação e à sua integridade física ; ou se tratou de concertação objetiva e de provocação organizada. Vai dar ao mesmo.

Os desesperados ou provocadores que durante uma hora atiraram pedras podiam e deviam ter sido isolados e travados na sua ação pela “autoridade” dado que o faziam de forma visível e explícita e repudiada pela multidão de manifestantes.

III

Temos que ter e dar clareza sobre as táticas da repressão do Estado. Temos ter em atenção o “papel da história na violência”. Ou seja já sabemos ao que vêm. Cá do nosso lado são dois mortos: Luís Caracol em 1977 frente ao Tribunal Militar quando com milhares protestava contra a prisão do estudante Rui Gomes e José Jorge Morais em 1978 no largo Camões quando contestava com mais centenas de militantes revolucionários uma manifestação neonazi; e dois hemiplégicos Jorge Falcato Simões, em 1978 também no Largo Camões, e Luís Miguel, em 1994 no viaduto do Pragal durante a “revolta da ponte”, fora as centenas se não milhares de espancamentos, graças à polícia democrática.

O que já anda por aí a fazer caminho é o slogan "quem não quer ser lobo não lhe veste a pele", ou seja se não queres ser espancado não te ponhas em posição, não andes com más companhias. O Rui Ramos que dizem que é historiador tem um artigo no Expresso bem elucidativo. Ele quer a censura, ele quer a repressão sem hesitações contra todos aqueles que “querem desacreditar o regime, como na Grécia”. Estamos quase a adotar uma espécie de “patriotic act” e a olhar para o lado a ver muito bem onde andam os terroristas!

Não nos podemos deixar encurralar pelo trabalho "concertado" da Polícia (é sempre o instrumento de repressão que não respeita nada nem ninguém se tiver oportunidade para isso - o pessoal está a amolecer com as cenas dos polícias bonzinhos nas outras manifestações) e dos grupos organizados, que até metem claques - alfobre de fascistas - para diminuir a importância das acções populares organizadas ou espontâneas e para chantagear e amedrontar futuros manifestantes e criar um clima de aceitação da violência do Estado, ou seja de paulatina redução da democracia que é um dos objetivos da ditadura financeira que nos governa.

Todos vimos a brutalidade da agressão da polícia que atingiu pessoas pacíficas, quando, quem não sabe pelo menos intui,mesmo do ponto de vista da polícia, bastava a investida sem cacetadas para dispersar a multidão. Aliás as manifs estão mais que infiltradas de polícias que poderiam desde sempre isolar os elementos mais violentos ou, melhor dizendo, de violência realmente violenta. Arremessar calhaus daqueles e explosivos contra polícias pousados é inaceitável.

O governo sai simpático e respeitador quando a violência da sua política é ainda mais bestial do que a da polícia e do que a dos grupos "milicianos" de violência provocatória.

A violência só é legítima em resposta a violência ilegítima das autoridades e, em geral, quando e se tal corresponder a um sentimento explícito da massa que, na altura devida, se ela chegar, se encarregará de a exercer com toda a legitimidade. Não precisa de excitadores que ainda por cima agem contra os interesses expressos e defendidos nas manifestações populares.

Sobre o/a autor(a)

Coronel na reforma. Militar de Abril. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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