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O país que não queremos ser

Por que é que a STCP que não foi vendida por concurso ao longo de meses, sê-lo-á por ajuste direto a dias das eleições? Será porque a falta de transparência, rigor e controlo público tornam o processo mais atrativo e simples?

Imaginem que o jornal que têm na mão, ou à frente do vosso computador, não é o "Jornal de Notícias". Imaginem que se chama, em vez disso, "Diário de um país nada recomendável". Não importa o país. Pode ser um qualquer, daqueles que gostamos de pensar que só existem longe da nossa polida e reconfortantemente honesta "democracia social de mercado".

Nesse país há um sistema de autocarros que pertence ao Estado. Chamemos-lhe STCP.

Durante décadas, os governos desse país subfinanciaram as empresas de transportes, empurrando-as para um endividamento bancário que se tornou insustentável. Nesse momento a solução encontrada foi pôr os trabalhadores e os utentes a pagar os erros de governos incapazes. E assim, desde 2011, aumentaram os preços em mais de 20% e reduziram a qualidade dos serviços. Os motoristas passaram a trabalhar horas extras e, mesmo assim, assistimos a quebras sucessivas no serviço prestado. A STCP perdeu 3 em cada 10 dos seus passageiros.

E este é o momento de perguntar: será incompetência o problema deste país? A resposta é não. A estratégia é pensada: habituar a população a conviver com um pior serviço, mais caro, que possa ser fornecido por um operador privado. O objetivo é mesmo transformar um serviço público, que para ter qualidade precisa necessariamente de investimento público, num negócio atrativo para um operador privado.

E assim, apesar da contestação, o Governo abriu um concurso para entregar a STCP a privados. Um processo apressado, que estava condenado a fracassar por ausência de candidatos em condições de sequer apresentar as garantias bancárias. Se acha que o Governo se deteve perante as dificuldades, desengane-se. Dias depois, pela voz do secretário de Estado das privatizações, o processo é reaberto, mas desta vez sem concurso. A venda será feita por ajuste direto, e os candidatos terão 12 dias para apresentar propostas.

Mais uma vez, a pergunta impõe-se. Por que é que uma empresa que não foi vendida por concurso ao longo de meses, sê-lo-á por ajuste direto a dias das eleições? Será porque a falta de transparência, rigor e controlo público tornam o processo mais atrativo e simples? Será porque o tal Governo está prestes a sair de funções e quer deixar os negócios fechados? Certamente as duas coisas, mas uma coisa é certa: se soa a vigarice, parece vigarice e cheira a vigarice, talvez seja mesmo vigarice. E o país nada recomendável é mesmo Portugal.

O que fazer? Votar. Votar para garantir que não terão mais quatro anos de negócio, votar para manter a STCP e a Metro do Porto em mãos públicas, que é onde devem estar. Enquanto o 4 de outubro não chega, juntem-se hoje ao cordão humano contra a privatização dos transportes do Porto, às 18 horas, na estação da Trindade.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 1 de setembro de 2015

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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