O ocaso dos prefixos: uma nova era colonial?

porMaria J. Paixão

12 de abril 2025 - 13:55
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A invasão da Ucrânia gerou a onda de choque que gerou precisamente porque rompeu com a ordem estabelecida, assente na recusa das disputas territoriais diretas entre Estados do mundo "desenvolvido". Poderá inclusive dizer-se que o colonialismo puro e duro nunca desapareceu por completo.

Vivemos um período de acelerada desconstrução da ordem internacional que se constituiu no pós-Segunda Guerra Mundial. Essa transformação manifesta-se no fim da polidez e da aura de correção moral que cobriam as intervenções dos dirigentes mundiais. Assistimos ao regresso da brutalidade no discurso e, inclusive, do próprio uso da força bruta.

Durante o último meio século, o imperialismo norte-americano subjugou todo o globo através de dinâmicas neocoloniais, guerras por procuração e interferência encoberta nos assuntos internos dos Estados. Os métodos de contrainsurgência aplicados extensivamente pelos EUA e o modo como as sucessivas Administrações ocultaram do público essa forma de intervenção estão bem documentados no livro ‘O Método de Jacarta’, do jornalista Vincent Bevis. Portugal esteve, aliás, no olho do furacão, com a Revolução de Abril a abrir um debate no seio da cúpula estadunidense sobre a forma de garantir que a revolução tinha o desfecho que melhor se ajustava aos interesses dos EUA no quadro da Guerra Fria. Conforme atestam as múltiplas comunicações hoje públicas, Portugal serviu de teste para uma nova forma de interferência americana, não-militar, que pretendia afastar as então crescentes acusações de intervencionismo sanguinário na América Latina e Sudeste Asiático. Esta mesma técnica viria a mostrar-se altamente eficaz na contenção das revoluções e transições democráticas que se deram nos demais países do Sul da Europa nos anos seguintes.

Este tipo de imperialismo preocupado com a sua imagem parece conhecer agora o seu fim. Nestas primeiras semanas de mandato, Trump anunciou publicamente a intenção de anexar o Canadá, de reassumir controlo sobre o Canal do Panamá, de ocupar a Gronelândia e de criar uma "Riviera" em Gaza, operando uma limpeza étnica da população palestina. O neocolonialismo está morto – estas são afirmações abertamente coloniais.

O regresso do colonialismo não é, claro, prerrogativa exclusiva dos EUA. A invasão da Ucrânia gerou a onda de choque que gerou precisamente porque rompeu com a ordem estabelecida, assente na recusa das disputas territoriais diretas entre Estados do mundo "desenvolvido". Poderá inclusive dizer-se que o colonialismo puro e duro nunca desapareceu por completo do radar dos países do centro do sistema mundial, sobrevivendo na política expansionista do Estado de Israel. A proposta de Trump sobre a "Riviera" em Gaza é apenas um laivo mais excêntrico do projeto colonial do sionismo israelita. O regresso do colonialismo, nesta sede, é demonstrado pela voracidade genocida da ação israelita recente e pela impavidez com que os dirigentes europeus ignoram, por exemplo, a decisão do Tribunal Internacional de Justiça que declarou a ilegalidade dos colonatos israelitas e reconheceu a prática de apartheid pelo Estado israelita.

Perante estes desenvolvimentos, importa indagar as causas da viragem verificada. Todos os exemplos apontados têm em comum uma retórica de base de vitimização. A alegada vulnerabilidade da comunidade nacional justifica a incursão e apropriação de território alheio, apresentado como imprescindível para proteção própria. A ideia fundamental é a de que os interesses de um povo (os russos, os americanos, os israelitas…) estão em alarmante perigo, donde resulta um direito inalienável a assegurar parcelas de território que permitam restaurar a segurança e a prosperidade nacionais. Nesse contexto, não deixa de ser curioso notar que as mesmas forças políticas que atacam as políticas progressistas pelo "identitarismo vitimizador", justificam o brutal açambarcamento de terras a partir da narrativa da vítima aplicada à identidade nacional.

As contradições e horrores desta linha de pensamento político tornaram-se especialmente evidentes num artigo publicado online no The Times of Israel, cujo autor mobilizava o conceito de ‘Lebensraum’. Este é um conceito historicamente associado ao partido Nazi, traduzido como "espaço vital". Segundo a doutrina nazi, o espaço vital corresponderia ao espaço geográfico necessário para a raça ariana prosperar. Dada a expansão numérica da população, desejável devido à respetiva superioridade racial, tornava-se imperativo alargar as fronteiras do Reich. Em termos idênticos, o autor do artigo mencionado utilizou o conceito a respeito da expansão territorial do Estado israelita para a região do West Bank. O crescimento exponencial da população israelita gerará a necessidade de mais espaço, não só para viver, mas também para expandir a produção agrícola. A preocupação com o crescimento demográfico e a produção alimentar é tão mais importante, nota o autor, quanto as alterações climáticas em curso se agravam, donde resultarão, no futuro, disputas agressivas pelo território. O foco primordial do texto é, precisamente, a emergência climática e as respetivas consequências sobre as sociedades humanas, nomeadamente a escassez de bens alimentares e água e o massivo movimento migratório esperado. Todas as preocupações climáticas são abordadas através da lente do "crescimento populacional e imigração", com laivos indiscutíveis de ecofascimo. O futuro próximo é apresentado como uma disputa global por recursos, que exigirá a redistribuição da população.

Conforme referido, é esta mesma lógica de açambarcamento de recursos e ocupação estratégica de terra que subjaz a todas as retóricas coloniais emergentes. Basta considerar o "acordo" sobre minerais críticos proposto pelos EUA à Ucrânia e o modo como a disputa territorial com a Rússia tem sido instrumentalizada pela Administração Trump para obter o assentimento de Zelensky.

Olhando em redor, tudo indica que o colonialismo puro e duro está de volta. O neocolonialismo não servirá num mundo errático, à beira do colapso socioecológico. À medida que cai a máscara da polidez, somos recordados da centralidade da terra e daquilo que ela produz.

Artigo publicado em Sabado a 16 de março de 2025

Maria J. Paixão
Sobre o/a autor(a)

Maria J. Paixão

Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Investigadora na área do Direito do Clima. Ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais
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