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O obstáculo corporativo

Não assistimos ainda a uma explosão social. Há várias explicações que se conjugam: a expectativa do aumento do salário mínimo, os acordos feitos pelo governo com sindicatos e patrões... Há um outro obstáculo sobre o qual temos de falar: o corporativismo sindical.

A vida está cada vez mais difícil. Mas não assistimos ainda a uma explosão social. Há greves, mas não uma onda de contestação. É preciso pensar porquê. Há várias explicações que se conjugam: a expectativa do aumento do salário mínimo, os acordos feitos pelo governo com sindicatos e patrões, a maioria absoluta do PS, etc. Num enfoque menos conjuntural, há um outro obstáculo sobre o qual temos de falar: o corporativismo sindical.

Corporativismo é o espírito de corpo. Uma união, mas uma união excludente: os trabalhadores de cada profissão identificam-se nos seus interesses próprios, específicos, diferenciando-os (ou até opondo-os) aos do resto da classe trabalhadora. O corporativismo tende a ser profissional, mas em casos mais agudos afunila-se numa só empresa ou, até, num só local de trabalho ou departamento. Converge facilmente com o egoísmo e até o individualismo fomentados pelo neoliberalismo ― os meus interesses antes dos dos outros, os dos meus antes dos restantes.

O corporativismo relaciona-se também com a estreiteza economicista, com um sindicalismo rasteiro que não se propõe a alavancar a luta dos trabalhadores e do povo, mas a negociar concessões para uns poucos. Fomenta o aparelhismo nos sindicatos e até a fragmentação. Há casos bizarros: na CP há um sindicato para os maquinistas; outro para os revisores; um junta, sobretudo, pessoal das oficinas; e ainda há um dos manobradores.

Já foi dito que é melhor haver lutas corporativas do que lutas nenhumas; e que antes sindicatos desta índole do que a ausência de organização sindical. Além disso, não é raro as lutas de sectores profissionais específicos, mesmo que separadas do resto da classe, sejam aguerridas e até inspiradoras. E, não poucas vezes, lutas heroicas destes setores são injustamente difamadas recorrendo a este epíteto.

Não obstante, há que ter lucidez. Frequentemente, as lutas que começam numa empresa profissão específica, se não se alargam e confluem com mobilizações maiores, isolam, dividem e refluem ― de porta de entrada da contestação social transformam-se num beco sem saída.

Nos últimos meses, greves e ações sindicais têm recrudescido. Mas de forma separada e isolada. Vários fatores concorrem para isso. Mas não devemos desprezar o peso do corporativismo, pois ele existe não apenas em várias lideranças sindicais, mas também entre os trabalhadores, muitas vezes entre os mais combativos. Precisamos de falar sobre isso.

Na sequência da grande crise capitalista aberta em 2008, vivemos várias ondas de mobilização social. Vimos grandes manifestações populares e também fortes greves sectoriais. Houve lutas profissionais, específicas, mas elas confluíram em sucessivas vagas transversais. O combate das professoras e professores contra Maria de Lurdes Rodrigues polarizou a contestação global contra Sócrates; mais tarde, greves de estivadores e maquinistas convergiram com amplas manifestações ditas inorgânicas e com greves gerais. Massivas jornadas interprofissionais convocadas pela CGTP encheram as ruas. Esses movimentos alimentaram a derrota da direita, explicam a vitória da esquerda nas eleições de 2015 e obrigaram à devolução (parcial) de rendimentos. Mas também sofreram derrotas: a contrarreforma laboral da direita e da troika manteve-se e não foi revogada até hoje. A relação de forças dentro das empresas deteriorou-se e o movimento sindical sofreu com isso. Herdámos, até hoje, esses reveses.

Logo no período seguinte, após um hiato de acalmia, ressurgiram as lutas. Foi a primeira greve da Autoeuropa, em 2017; foram novas greves de estivadores, de enfermeiros, de camionistas, entre outras. Porém, essa nova vaga não confluiu num movimento transversal, amplo. Nuns casos mais do que outros, o espírito corporativo foi vincado. As movimentações no terreno sindical expressaram-no, com o surgimento de novas organizações assentes na estreiteza profissional. Em vários casos, as ordens substituíram-se ou confundiram-se com os sindicatos. Protagonistas de direita, aventureiros e oportunistas usaram esse palanque em proveito próprio e em detrimento dos trabalhadores. O governo agradeceu: descredibilizou, dividiu e cooptou. Ao mesmo tempo, uma reorganização aconteceu nos novos movimentos sociais: mobilizações feministas, antirracistas e climáticas cresceram em dimensão e protagonismo. Mas não conseguiram confluir com um movimento sindical, muitas vezes estreitamente economicista e desconfiado. Superar esta divisão é uma tarefa ainda em aberto.

Estes problemas não resolvidos tornam mais lento o surgimento de uma nova onda de lutas transversais. Ela, provavelmente, virá. Mas quanto mais rápido superarmos o corporativismo e a fragmentação, mais célere e poderosa será. Isso não acontecerá por magia: construir plataformas amplas, dias de ação conjuntos, dialogar com a população, trabalhar com os movimentos não-sindicais e, sobretudo, organizar espaços e vozes unitários, não só sindicais e económicos, mas políticos e sociais é uma tarefa da esquerda. Unir na diversidade, alçar a indignação económica a contestação política para construir uma alternativa: unidos podemos vencer.

Sobre o/a autor(a)

Assistente editorial e ativista laboral e climático
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