O não tão estranho assassinato do CEO!

porBruno Maia

11 de dezembro 2024 - 16:36
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Esta é a imagem de um sistema de saúde privado, no qual o acesso está dependente da vontade e da ganância das seguradoras. Admira que um assassino a soldo rapidamente se torne num herói popular?

Leon Lederman, norte-americano, foi um dos grandes físicos do séc. XX  que identificou o bosão de Higgs, ao qual atribuiu a designação de “partícula de Deus”. Ganhou o prémio Nobel da Física em 1988. Em 2011, Lederman foi diagnosticado com Alzheimer. Para pagar os cuidados médicos associados à doença, vendeu em 2015 a sua medalha do prémio Nobel num leilão, por 765 mil dólares. A doença acabou por levar Lederman, mas foi o sistema de saúde do seu país que o humilhou no final da sua vida.

O assassinato do CEO da maior empresa de seguros de saúde dos EUA, à queima-roupa, em plena luz do dia e no centro de Manhattan, despoletou um “encolher de ombros” coletivo, uma total indiferença ou, pior, manifestações de satisfação que se multiplicaram aos milhões pelas redes sociais. Não foi a morte de um ditador inimigo ou de um conhecido “serial killer”. Não, foi o assassinato de um CEO de uma empresa. Uma empresa que vale 566 mil milhões de dólares e que em 2023 teve lucros de 372 mil milhões. A quarta maior empresa dos EUA! E que empresa!

Em 2019, quando o congresso norte-americano discutia o “Medicare for all” - a proposta de Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez para o alargamento do seguro de saúde público a todos os cidadãos -, um “whistleblower” colocou um vídeo na internet onde se vê e ouve o CEO da UnitedHealthcare da altura, Steve Nelson, a afirmar que «fizemos muito mais do que aquilo que imaginam [...] estamos a fazer lobby intenso no Congresso [...] entramos no debate com cautela, pois não queremos que pareça que agimos em interesse próprio». O “lobby intenso” eram 8 milhões de dólares gastos a pressionar congressistas para rejeitar aquela proposta.

Wendell Potter foi durante anos alto administrador do UnitedHealth Group. Segundo o próprio, «durante a pandemia da Covid-19, a UnitedHealthcare gastou 1.700 milhões a comprar as suas próprias ações, em vez de utilizar esse dinheiro para reduzir os prémios e os co-pagamentos aos seus clientes. Ao mesmo tempo, obrigava médicos a reduzir em 60% aquilo que cobravam à seguradora, sob pena de serem expulsos da rede de cuidados cobertos por esta. (...) Os americanos estão a adoecer e a morrer e os médicos a arriscar as suas vidas para os salvarem. Entretanto, as companhias de seguros estão a negar cobertura aos doentes e a comprimir os salários dos médicos para aumentarem os seus lucros. Esta é a história do sistema de saúde americano nos dias que correm». A UnitedHealthcare é recordista na recusa de cobertura de cuidados de saúde aos seus próprios segurados – um terço de negativas, quando a média das restantes empresas é metade disso. Em Portugal, o problema de rejeição também existe. Só que temos uma importante diferença: o SNS. Quando uma das frequentes falhas de cobertura da seguradora, mesmo no meio de um internamento ou de um tratamento, o doente vem para o SNS, que o aceita e trata sem discriminações. Nos EUA, onde não há um SNS, a história é bem diferente. Por lá, o termo "negativa de cobertura" indica um de dois destinos possíveis: a morte por uma doença curável ou a bancarrota da família. Esta é a realidade para milhares de pessoas a cada dia que passa nos Estados Unidos.

Um estudo realizado pela Kaiser Family Foundation em 2019, estima que um em cada cinco norte-americanos estaria em risco de insolvência por dívidas relacionadas com cuidados de saúde e que 9% da população já teria, em algum momento da sua vida, entrado em falência «doméstica» por esse motivo. Um outro estudo, de Woolhandler et al., afirma que anualmente há meio milhão de insolvências individuais causadas por acumulação de dívidas contraídas para pagar cuidados de saúde.

É isto um sistema de saúde privado, no qual o acesso está dependente da vontade e da ganância das seguradoras. Admira que um assassino como este suscite tamanha compreensão nas redes sociais? Quem colocará a polícia de Nova Iorque na lista de suspeitos? A cobertura de custos foi negada pela UnitedHealthcare a 29 milhões de clientes... a lista é longa!

Naturalmente, não faltou quem expressasse choque perante a vaga de simpatia pelo assassino do CEO da UnitedHealthcare, expressa nas redes sociais. Mas muito deste humanismo ainda está enterrado nos escombros de Gaza. Quem há mais de um ano mente ou encolhe os ombros perante o assassinato em direto de dezenas de milhares de crianças, não deve vir dar lições ao mundo.

Bruno Maia
Sobre o/a autor(a)

Bruno Maia

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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