O mundo de sonho da Iniciativa Liberal

porMariana Mortágua

28 de janeiro 2022 - 11:59
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Aqui chegamos com a direita mais ou menos liberal, de braço dado com a extrema-direita, com o mesmo objetivo: entregar Portugal a uma oligarquia económica, libertar os milionários e reinstaurar o feudalismo nas relações laborais.

São 614 páginas de programa que a IL preferiu até depois de passar pelos debates. A primeira evidência: os liberais negam a emergência climática, o que aliás se revela na falta de preocupação com o gasto de tanto papel com frases feitas e ideias repetidas. Devo dizer que este extenso documento me parece até um mau exemplo, para um partido que apregoa a eficiência, que santifica o marketing e tem horror à burocracia. 614 páginas. Mas eu até percebo…

Em primeiro lugar é preciso exibir conhecimento de inglês: a IL quer usar o modelo de co-creating no procurement, propõe uma framework que avalie a eficácia das políticas, quer transferir know-how, criar mecanismos de soft law e também de comply or explain, assim como o princípio de once-only, sempre cuidando da manutenção do level playing field e mesmo sabendo que o equity crowdfunding é praticamente inexistente e que o volume de private equity é irrisório. Para tudo isto haverá, como não deixará de ser, um follow up adequado.

Em segundo lugar, há que reconhecer, os liberais tiveram muito trabalho para encontrar formulações em que não pareça que estão a propor o que de facto estão a propor.

Já conhecemos o modelo liberal para os serviços públicos: acabar com eles e transformá-los num negócio financiado pelo Estado, a começar pela saúde

Já conhecemos o modelo liberal para os serviços públicos: acabar com eles e transformá-los num negócio financiado pelo Estado, a começar pela saúde. Mas se lerem o programa da IL ficarão a saber que, e cito, “o Estado não deve financiar escolas privadas! Pois não! O Estado deve financiar … o aluno”. Fim de citação. Como se o aluno não fosse depois entregar o dinheiro a uma escola privada. Isto se for à escola, é claro.

É que os liberais falam muito de empreendedorismo e o crescimento económico mas preocupam-se pouco com o nível de qualificações em Portugal. Na República Checa, um daqueles países que Cotrim de Figueiredo insiste que cresce mais que Portugal, 94% da população concluiu o ensino secundário. Em Portugal são 55%. Mas Carlos Guimarães Pinto, cabeça de lista da Iniciativa Liberal no Porto, acha isso excessivo. Acha que a escolaridade obrigatória até ao 12º ano é um desperdício de recursos e… imaginem só, um ataque à “liberdade de escolha” das famílias. Que bons e modernos eram os tempos em que as famílias eram livres para pôr os seus jovens e crianças a trabalhar antes da puberdade.

substituir o atual modelo de financiamento central do ensino superior, para o financiamento direto ao aluno do custo efetivo das propinas, à semelhança do sistema de student finance em uso no Reino Unido

Para os jovens que “escolham” prosseguir os seus estudos até ao ensino superior, os liberais defendem um princípio, e cito: “substituir o atual modelo de financiamento central do ensino superior, para o financiamento direto ao aluno do custo efetivo das propinas, à semelhança do sistema de student finance em uso no Reino Unido.” Isto é: uma dívida a 34 anos logo à saída da faculdade. A ideia acabou escondida, mas Cotrim já explicou que foi só porque agora não dá jeito mas que o princípio é muito bom.

Há mais, nestas 614 páginas de pura inspiração liberal.

Toda a gente sabe que uma das muitas consequências de desmantelar os serviços públicos é a redução massiva do número de trabalhadores que hoje garantem as escolas, as universidades, a investigação, a justiça, a saúde, as respostas sociais.

Cavaco Silva, colocou em prática muitas das inovações que os liberais agora apresentam com ar de novidade, debatia-se com a mesma dificuldade - e cito Cavaco: “Como nos vamos livrar deles [funcionários públicos]? Reformá-los não resolve, porque deixam de descontar para a CGA e diminui as receitas de IRS. Só resta esperar que acabem por morrer...” fim de citação

Mas os liberais de hoje têm pressa. Dá-lhes igual que Portugal tenha menos funcionários públicos do que o seu paraíso irlandês, ou que gaste menos em Educação e Saúde do que a média dos países da Europa. Por isso propõem “uma racionalização faseada do número de funcionários” Como? Num debate televisivo Clara de Sousa perguntou: “o que aconteceria aos 700 mil funcionários públicos”, Cotrim respondeu: “bom, teriam funções idênticas em privados”. Mas o que vai fazer aos funcionários públicos, novamente Clara de Sousa? “Os prestadores privados (financiados pelo Estado) precisam de colaboradores”. Mas o que acontece ao vínculo? Cotrim responde: “como toda a gente que decide mudar de emprego deixa de ter um vínculo e passa a ter outro”. A liberdade da IL faz-me lembrar aquela rábula de Raul Solnado: quer queiras quer não queiras, vais ser bombeiro voluntário”, e por bombeiro voluntário eu quero dizer, em bom portugues, desempregado ou precário.

Mas prossigamos. Habitação, vejamos o que dizem os liberais sobre habitação. Segundo o seu programa há que “libertar” o setor das atuais regras, em especial as que limitam o alojamento local. 51% de aumento do preço das casas em 5 anos ainda é pouco, os liberais desejam mais para os fundos de investimento imobiliário.

O que não consegue explicar é como é que um jovem já endividado, ou uma família com salários médios, vai exercer essa sua liberdade de comprar uma casa de meio milhão de euros.

Para o envelhecimento ativo, os liberais propõem, e cito: “Dar liberdade aos empregadores e trabalhadores para, de forma unilateral, poderem reduzir o horário ou cessarem o contrato de trabalho de uma forma mais flexível do que está previsto atualmente no Código de Trabalho”. Enfim, toda a gente sabe que andar à procura de emprego é uma forma de envelhecer de forma ativa.

Para a banca, os liberais exigem a eliminação de “inúmeras medidas punitivas” que assolam o setor. Defendem o fim da taxação sobre os bónus dos administradores, uma das ideias mais curiosas do seu programa

Para a banca, os liberais exigem a eliminação de “inúmeras medidas punitivas” que assolam o setor. Defendem o fim da taxação sobre os bónus dos administradores, uma das ideias mais curiosas do seu programa.

Que mundo de sonho este, em que as crianças só vão à escola se os pais acharem isso boa ideia, em que os jovens começam a vida endividados, em que a habitação é um luxo, a saúde um negócio, em que as pensões são jogadas no casino e em que quem ganha 1500 euros paga a mesma taxa de imposto que o presidente da EDP, que tem recebido milhões de euros. Como é que um precário não há-de sentir-se bem sucedido se está no mesmo escalão de IRS que o presidente da EDP?

Obrigada, mas não. A língua de trapos dos liberais não nos convence. Portugal já se embriagou dessa suposta liberdade que privatizou a banca e as empresas produtivas, que abriu a porta aos privados na saúde, que esperou que os funcionários públicos morressem sem ser substituídos, que condenou várias gerações à precariedade e à pobreza. Essa vossa liberdade é um peso acorrentado ao nosso pé, condena país à estagnação económica que agora tanto parece preocupar-vos.

E não nos venham falar da Lituânia, onde o PIB por habitante cresceu tanto. Sabem porquê? Porque na última década a Lituânia perdeu quase um quarto da sua população, 1 milhão de habitantes dos 3,7 que tinha em 1990. É o segundo país mais desigual da Europa. O paraíso dos liberais é um país devastado porque as pessoas emigraram.

Tal como emigraram recentemente os jovens portugueses porque um governo de direita lhes negou um trabalho, um contrato, um salário. Lembram-se?

Lembro-me que nessa altura Miguel Relvas (ministro do PSD e do CDS) convidou um jovem vendedor de pipocas para repetir a conversa de que se não fores bem sucedido a culpa é tua. A conversa de que somos todos iguais, todos egoístas, todos Ellon Musks em potência. Não somos! Somos o sítio onde nascemos e a escola. Somos os pais, os avós, ou a sua ausência, somos fruto do privilégio ou da falta dele, somos cor da pele e orientação sexual. Não somos iguais nesta sociedade em que nos impõem desigualdades.

E se o Elon Musk vos diz que vocês são iguais a ele é porque quer pagar pela sua fortuna a mesma taxa de impostos que vocês pagam pelo salário que tanto custa a ganhar. Uns trabalham, outros fazem fortuna a manobrar a economia do ar, do vazio, da maningância. É assim o sonho da direita.

Não somos iguais. E não o seremos enquanto não tivermos o mesmo acesso à educação, à saúde, à cultura, à habitação, a empregos dignos.

Já notaram como em matéria de liberdade económica, o programa dos liberais é tão parecido com o de André Ventura?

Já notaram como em matéria de liberdade económica, o programa dos liberais é tão parecido com o de André Ventura?

Ventura pode ter substituído o programa por um panfleto, mas sabemos que quer desmantelar o SNS e vender as escolas. O Chega escreveu que o salário era mesmo para baixar.

Sabemos que à mesa de André Ventura se senta a máfia da economia, os advogados que facilitam a especulação, antigas figuras do BES, acionistas da TAP, gente envolvida no negócio de Vale do Lobo. Todos empenhados em promover subscrever o programa de André Ventura, todos a financiar o Chega.

de todos os partidos de extrema-direita europeus, o Chega se apresenta com o mais à direita na economia, o mais radical defensor do mercado livre e do grande negócio. Ventura é o mais neoliberal dos neoliberais, e só ouve a voz do dono

Não é por acaso que, de todos os partidos de extrema-direita europeus, o Chega se apresenta com o mais à direita na economia, o mais radical defensor do mercado livre e do grande negócio. Ventura é o mais neoliberal dos neoliberais, e só ouve a voz do dono. Por isso gosta dos vistos gold, vive bem com offshores, e sonha entregar os serviços públicos aos amigos.

Mas, e os direitos individuais perguntam vocês? Até onde vão os liberais na defesa da pobre liberdade de que tanto falam? 614 páginas de programa e não encontramos uma framework para o racismo, palavra, aliás, que não aparece only once naquele calhamaço. Falta compliance para os direitos das mulheres, e explain para a falta de medidas de combate à homofobia e à transfobia.

Para a direita nada disto importa realmente. A pobre liberdade juntou-os ao PSD e ao Chega nos Açores para cortar apoios sociais às crianças mais pobres. A direita pode pintalgar a sua ideologia de rosa choque, de rosa chique, da cor que entender. Pode apostar em criar um novo dialeto mas a realidade é que sempre estiveram no centro do poder. São eles o mercado que manda, são os donos de Portugal, que destruiram a economia com a sua ganância.

O que a direita nos propõe agora é rebatizar os Berardos, Ricardos Salgados e Moniz da Maia desta vida como equity funds, business angels ou venture capital, para fingir que começa tudo de novo. Os aventureiros que faliram a banca são os mesmos que promoveram as PPP das autoestradas ou dos hospitais e que agora aplaudem a IL, o Chega e o PSD a prometerem mais oportunidades de negócio, que é tudo o que lhes interessa.

com a direita mais ou menos liberal, de braço dado com a extrema-direita, com o mesmo objetivo: entregar Portugal a uma oligarquia económica, libertar os milionários e reinstaurar o feudalismo nas relações laborais

É assim que aqui chegamos com a direita mais ou menos liberal, de braço dado com a extrema-direita, com o mesmo objetivo: entregar Portugal a uma oligarquia económica, libertar os milionários e reinstaurar o feudalismo nas relações laborais.

Quero terminar completando a história que os liberais nunca se atrevem a contar até ao fim. Hayek, o pai intelectual do liberalismo sabia muito bem que a supremacia do mercado só poderia ser conseguida à custa da supressão dos direitos sociais e individuais. Por isso escreveu, acerca do regime de Salazar, que não conhecia outro país em que a liberdade fosse tão protegida.

Porque falei tanto de liberais esta noite? Porque eles são a mais recente caricatura da direita económica que nos aprisionou no atraso e na desigualdade sempre com a desigualdade na boca.

Liberdade é não depender do dinheiro para ter saúde. Liberdade é não depender do dinheiro para ter saúde. Liberdade é não depender do dinheiro para ter escola, liberdade é vivermos a nossa vida sem o medo e a insegurança que a receita liberal instala sempre, cedo ou tarde, na vida de um povo. A liberdade é o ar que respiramos para construir um país de iguais.

Quem quer liberdade só tem uma coisa a fazer no domingo: votar Bloco de Esquerda. Votar no Bloco de Esquerda para terceira força política. Votar no Bloco de Esquerda para derrotar o Chega e garantir uma maioria à Esquerda.

Intervenção de Mariana Mortágua no comício do Bloco de Esquerda em Lisboa, 27 de janeiro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Mariana Mortágua

Deputada. Coordenadora do Bloco de Esquerda. Economista.
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