Está aqui

O mar não tem tempo para esperar

Continuaremos na hipocrisia do discurso bonito do “salvem os oceanos” para no dia seguinte irmos de flor e queijo receber um dos maiores poluidores do mar?

Com o objetivo de compreender melhor o perfil dos passageiros que passam pelo Terminal de Cruzeiros de Lisboa, bem como a sua motivação, foi realizado um estudo, pela empresa Netsonda para a Administração do Porto de Lisboa e para a Lisbon Cruise Port.

Através desse estudo tivemos conhecimento de que são os passageiros que iniciam o cruzeiro em Lisboa quem mais contribui para o valor médio de 82 euros que é gasto por pessoa, ao despenderem, em média, 367 euros por pessoa antes do embarque (em hotelaria, restauração ou outros consumos). Em contrapartida, os passageiros cujos cruzeiros estão em trânsito pela capital portuguesa, são os que gastam menos, em média 37 euros por pessoa.

No final do mês de junho, Portugal acolheu a Conferência das Nações Unidas que reuniu chefes de Estado e de Governo, agências internacionais e organizações não governamentais para falar sobre tudo o que o mar nos oferece, nos poderá oferecer e as formas como podemos tratar dos problemas que, infelizmente, tem.

Ao fim de cinco dias, terminaram com a redação de uma declaração, em que num texto de sete páginas, as nações citam o “arrependimento profundo” ao reconhecerem a sua “falha coletiva em alcançar” várias das metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14, que foca na vida marinha, assumindo novamente o compromisso para a tomada de medidas urgentes, na cooperação nos níveis global, regional e sub-regional para que todas as metas se alcancem o mais breve possível e sem demoras.

Durante alguns meses, foi possível constatar a euforia vivida pelo executivo da Câmara da Praia da Vitória, que se desfez em prendas e fotos a cada navio cruzeiro que atracava no porto comercial do Cabo da Praia. Uma verdadeira azáfama. Na sua grande maioria atracavam pela manhã e saíam ao fim do dia, não dispondo, as e os passageiros, para dar um passeio pela ilha e para grandes consumos no comércio local. Apesar de algumas fotos publicadas com pessoas na Rua de Jesus, era possível constatar que não foram suficientes para alterar a dinâmica do centro da cidade, por poucas horas.

Um dos grandes problemas dos oceanos são os microplásticos, sendo que uma das formas menos mediatizadas deste flagelo tem origem nos navios cruzeiro.

A carga destas partículas, com um diâmetro inferior a cinco milímetros, nos oceanos do planeta está a aumentar. Trata-se de fragmentos de plástico, de fibras semi-sintéticas e de fibras de celulose natural. Estes poluentes provêm, designadamente, das águas cinzentas: águas usadas das lavandarias, das cozinhas, dos lavabos, dos duches e das lavagens dos navios, que podem ser lançadas ao mar de forma absolutamente legal devido ao Anexo IV da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Marinha pelos Navios (MARPOL), em vigor desde 2003. Uma vez dispersas, as partículas persistem no ambiente marinho, ameaçando de contaminação mais de 690 espécies e matando anualmente 100 mil mamíferos marinhos. Várias investigações revelaram concentrações de microplásticos nas águas cinzentas oriundas dos navios de cruzeiro nunca antes observadas num qualquer meio.

Não deixa de ser estranho que mesmo sabendo-se do enorme impacto que estes navios têm nos oceanos, se continuem a debater nas mais altas instâncias o futuro dos oceanos, sem que seja abordado o dano que este tipo de turismo representa para a sobrevivência do ecossistema marinho.

No entanto, na nossa realidade local, é possível refletirmos e percebemos se se justifica o investimento de milhões em cais de cruzeiros, se há retorno desse investimento e qual é o tipo de contribuição que queremos para o futuro do mar. Qual será o impacto financeiro, em cada ilha, que atraca um navio cruzeiro? Já se percebeu que existe “no ar” a ideia de se construir cais e mais cais…passamos de “Em cada esquina um amigo” para em cada porto um cais de cruzeiros.

Continuaremos na hipocrisia do discurso bonito do “salvem os oceanos” para no dia seguinte irmos de flor e queijo receber um dos maiores poluidores do mar?

Sobre o/a autor(a)

Deputada do Bloco de Esquerda na Assembleia Regional dos Açores. Licenciada em Educação. Ativista pelos Direitos dos Animais. Coordenadora do Bloco da Ilha Terceira
Comentários (1)