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Ó mar, ao mar, oh mar

O mar é a eterna saída de emergência para o imaginário de Portugal. No discurso oficial português fez-se uma reciclagem ao velho imaginário marítimo do passado patriótico e imperialista. O novo imaginário do futuro vê o mar como pleno de oportunidades para os empreendedores nacionais.

O mar é a eterna saída de emergência para o imaginário de Portugal. No discurso oficial português fez-se uma reciclagem - ou fez-se um rebranding? - ao velho imaginário marítimo do passado patriótico e imperialista. O novo imaginário do futuro vê o mar como pleno de oportunidades para os empreendedores nacionais. Basta tomar atenção ao discurso do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, num momento tão recente quanto o da entrega do prémio Pessoa na passada segunda-feira a Tiago Pitta e Cunha. Marcelo não hesita em terminar em tom profético, ao falar de “reencontrar o nosso futuro”, como se o mar tivesse de ser o nosso destino, simplesmente por acreditarmos que foi o nosso passado.

O que é que queremos dizer quando dizemos que Portugal é mar? Porque continuamos a dizê-lo: em 2014 foi distribuído um mapa pelas escolas portuguesas que tinha precisamente esse título. Depois, esta evocação da relação de Portugal com o mar esteve sempre - e ainda não deixou totalmente de estar - associada a uma ideia de grandeza ou superioridade. Não somos os “Heróis do Mar”? Só que o que sabemos e pensamos hoje não se compadece com essas lógicas nacionalistas. Quem já viu a mensagem do ativista, investigador e artista Rodrigo Ribeiro Saturnino em letras garrafais que está numa faixa rosa-choque pendurada do teto ao chão do MAAT: “Não foi descobrimento, foi matança”? A expansão marítima portuguesa está repleta de momentos de coragem, engenho e arte, mas não podemos continuar a assentar a nossa identidade no lado dourado da moeda enquanto ignoramos o lado reverso.

Depois, se Portugal é mar, não é porque o seja mais do que os outros países. Em nenhuma das áreas do setor marítimo encontramos Portugal numa posição de liderança internacional: nem na soberania, nem na economia, nem na ciência nem na ecologia. O que não quer dizer que não sejamos bons ou muito bons ou que não possamos vir a ser francamente melhores em muitas delas. O discurso tem corrido nesse sentido: tornar o mar um paradigma que atravesse governações e una os portugueses. É um paradigma que por um lado vê o mar como o maior “ativo” do país, um “recurso” por explorar e todo um “potencial por maximizar” e, por outro, integra no discurso as ideias de sustentabilidade e da preservação dos ecossistemas, nunca se explicando como é que uma estratégia extrativista pode conviver com os valores de conservação. Como disse Álvaro Garrido uma vez ao Público, é o “encantamento tecnocrata com a Economia Azul”. Não esqueçamos que neste novo Governo o Ministério do Mar passou das mãos de um investigador e ultra-defensor da conservação do oceano (Ricardo Serrão Santos) para ser um apêndice do Ministério da Economia e para as mãos de António Costa e Silva, com um discurso muito mais economicista e também ele um entusiasta das promessas azuis do “novo paradigma”.

Relembro a investigadora Elsa Peralta, que chamou a atenção para o facto de a ideia de Portugal ser um povo do mar não encontrar correspondência na realidade, nem se materializar em suportes visíveis. Peralta chama-lhe mesmo um “aparato representacional” que, como outras construções identitárias, serve agendas de poder concretas. No meio do aparato, aqueles que concretamente vivem do mar, pouca voz têm e não sabemos se o futuro deles é azul. Voltando a Garrido: “o parente pobre da cadeia de valor são os pescadores”. Que lugar está reservado na Economia Azul para os nossos pescadores e para todos os profissionais mal-pagos por um setor do turismo que tanto dinheiro extrai da nossa proximidade com o mar?

Finalmente, para uma visão realista sobre aquilo que queremos fazer com o mar, importa entender que não é só Portugal que é mar. Todo o mundo é mar. Descobrir as particularidades da relação de Portugal com o mar é determinante para delinear um futuro de um país que faz parte de um planeta oceano.

Sobre o/a autor(a)

Licenciada em Cinema, mestre em Comunicação e Media, bolseira de doutoramento em Sociologia no ICS da Universidade de Lisboa. Nasceu em Lisboa e vive na Horta, Açores, desde 2008. Co-diretora do Festival Maravilha na Horta
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