Desde tempos imemoriais que o ser humano combate a ideia da morte recorrendo aos mais complexos subterfúgios ou explicações para-racionais. A tentativa de explicação do último ocaso é quase sempre um livre-trânsito para a justificação da permanência, corpo que liberta a alma que perdura ou se transforma ou reencarna mas raramente padece dessa palavra terrível com que o Homem só se conforma (quando não há sequelas a metro) nos filmes: o fim. O fim, para os crentes, é sempre uma palavra composta. A fé que move tantos para tanta coisa, veículo apaixonante de ilusão, de conforto, de poder, de verdade. Não resiste bem ao contraditório mas também já não estamos no tempo dos autos de fé. A crença não se contesta ou pede execução sumária. A fé existe e aceita-se. A ressurreição com capacidade eleitoral é que não deixa de ser um fenómeno exclusivo dos caciques.
Quando estudava em Coimbra, os caciques estavam na boca das urnas em tempo de eleições para a Associação Académica. Era vulgar, era assim, era corpo datado pelo tempo. Subiam-se as escadas monumentais em mais um exercício de contabilização de degraus, arrebanhavam-se mais uns quantos incautos para a necessidade imperativa do exercício do voto (ora, escadaria abaixo), Dom Dinis assistia imóvel e mudo tal e qual a estátua que era e assim víamos chegar estudantes à sala de voto, nada esclarecidos mas levados ao colo ou de braço dado. Para alguns de nós, os indefectíveis das listas minoritárias e/ou alternativas, o fenómeno era constrangedor. A persuasão não era nada que nenhum de nós deixasse de tentar exercer. Essa possibilidade de persuadir era, de resto, uma das motivações mais fantásticas em qualquer eleição: um período de debate, muitas vezes aceso, na procura de esclarecer, desmascarar, propor, incendiar, atear o nosso próprio fogo à peça. O desejo era que se juntassem a nós os vivos. Tantas vezes assisti, à boca das urnas, a magotes de estudantes que vinham pelo seu próprio pé mas mortinhos de todo, em pânico para que lhe retirassem o braço entretanto dado. Zombies. E é desses que me lembro mais. Não dos incautos mas das vítimas da coação.
Para o PS, as suas primárias são um caso meramente interno, como se fosse um partido a operar à parte do país. Entre Seguro e Costa há uma Comissão de Fiscalização Económica e Financeira que avalia as queixas e acusações. Como tal, que interesse mórbido é este nos quatro casos de pessoas falecidas que subitamente constam dos cadernos eleitorais em Braga? Que interesse contabilístico existe pelo facto da concelhia de Famalicão ter aumentado a sua capacidade eleitoral de 20 para 828 militantes com quotas pagas em menos de uma semana? Que questão gravosa é esta para se polemizar à volta de mais de 2200 militantes inactivos há mais de cinco anos que regularizaram as suas quotas há uns meros dias? Deixem o PS resolver os seus problemas em paz. Depois o PS resolverá os problemas do país, calmamente, trazendo gente, repatriando emigrantes de volta a casa. Ressuscitando, não duvido, sobretudo gente entretanto desaparecida pelo actual ciclo dos "boys" laranjas. O PS pode mesmo regressar a casa, dar à costa. E no maior sigilo. Os braços dados escadaria abaixo em Coimbra são só uma hipótese meramente académica no presente. No PS de Braga ressuscita-se! Alto lá que isto já não vai lá com caciques amadores.
O PS encara o problema eleitoral nas suas primárias como os partidos do poder normalmente encaram o sigilo bancário. E isso é notável. Mortos, acamados, emigrantes, incautos, o caminho é para as urnas. Indo à lupa e comparando com Dezembro de 2013, altura das últimas eleições internas no PS, os militantes com quotas pagas aumentaram 190% em Vila Verde e 147,5% em Amares. Em Amares, o assunto é tratado miticamente pelo PS local como "um mistério". Percentagens ainda mais assimétricas surgem em Vizela e Celorico de Basto. CSI-PS, coligação à vista, numa espécie de homenagem aos desaparecidos. Os filmes são tantas vezes mais reais que a realidade que pretendem ficcionar e assim se percebe melhor o enredo do filme que parava o país, em 1984, numa cena de tirar o fôlego entre Ana Zanatti e Pedro Oliveira. Durante anos, "O lugar do morto" foi, pela mão de António-Pedro Vasconcelos, uns dos filmes mais vistos do cinema português e, porventura, um dos mais incompreendidos. Entrando no carro estacionado em frente ao mar, Zanatti em casaco de peles pedia a Oliveira: "Leve-me daqui". Demorou apenas um pequeno ciclo eleitoral de quatro anos para John Carpenter nos brindar com um tratado de suspense no seu filme "Eles vivem". Ainda parece que os estou a ver nas escadarias de Coimbra, ofegantes.
Artigo publicado a 2 de setembro de 2014 no “Jornal de Notícias”