Na noite do passado dia 5 de Junho concretizou-se o velho sonho da direita: uma maioria, um Governoe um Presidente. O discurso de Cavaco Silva nas comemorações oficiais do dia 10 de Junhoi foi o primeiro neste novo contexto político. Em Castelo Branco, o Presidente da República afirmou querer “trazer o interior do País para o centro da agenda nacional”. Esta ambição parece louvável e o empenho ousado, mas a mensagem contém ingredientes que, parecendo transportar-nos para o passado, nos dão preocupantes indicações sobre o presente e o futuro imediato.
Antes de mais, é fácil concordar com o essencial do diagnóstico feito por Cavaco Silva. Portugal é hoje um país radicalmente inclinado para (uma parte d)o litoral, um território que os interesses dividiram em duas partes distintas, ambas penalizadas por décadas de erros: uma fina faixa litoral, na qual se concentra o fundamental das escassas oportunidades que o país concede a milhões de cidadãos, desordenada e com largos segmentos da população afastados de padrões razoáveis de qualidade de vida; e o “interior”, que é no fundo quase todo o território, onde vivem pessoas esquecidas pelas políticas públicas, uma população com menos perspectivas de emprego, com cada vez menos acesso aos equipamentos e serviços fundamentais, frequentemente envelhecida e na presença de débeis economias locais.
Mesmo concordando com esta aparente prioridade concedida ao tema e até com boa parte da caracterização dos problemas, o conteúdo e a forma do discurso de Cavaco merecem alguns comentários.
Em primeiro lugar, as razões que levaram ao abandono massivo do interior tiveram respostas insuficientes ou erradas nas escolhas políticas feitas pelos sucessivos governos em democracia. Cavaco, que preferiu ocultar-se gentilmente desse duro balanço, conhece bem o que qualifica como “menosprezo dos poderes públicos pela realidade do interior”. A adesão entusiasmada a políticas agrícolas europeias desenhadas para favorecer a propriedade (e não, como podia e devia ser, a produção com critérios sociais e ambientais), a passividade ou cumplicidade perante a deslocalização das indústrias que se serviram de vários anos de gordas regalias e do trabalho barato, o encerramento de serviços públicos essenciais em nome duma suposta “racionalização dos recursos”: Cavaco, enquanto primeiro-ministro e depois como chefe de Estado, liderou ou apoiou todos os erros que agora aparenta denunciar.
Por outro lado, o discurso podia ser menos curto nas saídas para os problemas identificados. Concentrando-se no objectivo de diversificação das economias locais e nas estratégias para a instalação de novos agricultores, além de ignorar outras questões fundamentais, deixa apenas vagas indicações: a invocada mobilização das autarquias e das empresas locais é ainda mais difícil num contexto em que a austeridade selecciona particularmente estes actores; e o “programa de repovoamento agrário do interior” parece mais um soundbytedo que uma ideia concreta.
Mas talvez o mais importante seja mesmo a forma destemida como vários elementos do discurso nos remetem para um passado mais distante. Sabemos que Cavaco mede todas as palavras – não se trata duma análise cirúrgica e cínica sobre o que foi dito. No “Dia de Portugal” escolheu recuperar um imaginário de outros tempos, misturando a sinalização de problemas graves com uma narrativa ruralista: o elogio dessa suposta vida humilde e modesta, transformada num exemplo a seguir obedientemente em tempos de crise, é duplamente grave: o problema do interior é, afinal, a solução para o conjunto do paísii.
Responder ao desprezo a que vêm sendo votados territórios e populações é, neste formato requentado, mais um “imperativo de portugalidade” do que a coragem necessária para emendar desigualdades sociais e territoriais. As vítimas das políticas que abandonaram o país que se estende para lá do litoral são assim usadas como figurantes para o ensaio de uma identidade colectiva baseada na resignação às adversidades – e, portanto, na aceitação de novas injustiças.
A recuperação de um discurso antigo, as imagens de um povo simples e humilde, a invocação da sua “frugalidade” e “espírito de sacrifício”, são reveladoras da personalidade de Cavaco mas também do ciclo político que enfrentamos. Ao crescimento da onda da austeridade autoritária que invadiu as nossas vidas, juntam-se as tentações conservadoras, a simplificação dos problemas complexos, as tentativas rudimentares de instrumentalizar condições de vida e desigualdades. Alguns dirão que se trata apenas de mais um entusiasmo excessivo de Cavaco no dia 10 de Junho. Mas este é sem dúvida um sinal preocupante e a ter em conta.
iiEste excerto do discurso é bastante elucidativo: “A principal potencialidade do interior está, no entanto, no espírito que caracteriza as suas populações, as gentes desta terra. A garra indomável e a força de vontade dos Portugueses do interior devem servir de exemplo inspirador para todos nós. A sua frugalidade e o seu espírito de sacrifício são modelos que devemos seguir num tempo em que a fibra e a determinação dos Portugueses estão a ser postas à prova. Não podemos falhar. Os custos seriam incalculáveis. Assumimos compromissos perante o exterior e honramo-nos de não faltar à palavra dada. É dessa fibra que é feito o nosso orgulho.”