Decidiu recuperar as ideias aproveitáveis do Manifesto Comunista e empurrar o resto para o lixo, encarregando dois especialistas de apresentarem o mapa do tesouro: Rupert Younger, diretor do centro de investigação na Universidade de Oxford sobre “reputação empresarial”, e Frank Partnoy, professor de direito que chegou agora à Universidade de Berkeley. Explicam eles: “somos verdadeiros crentes no capitalismo de mercado livre, dificilmente seríamos comunistas tardios, muito menos discípulos de Marx e Engels”. Estamos tranquilos. “Mas”, há sempre um mas, “acreditamos que chegou o tempo de reescrever o seu Manifesto” pois vivemos hoje “na vaga de uma crise financeira calamitosa e no meio de uma tempestade de mudança social, com uma rejeição popular contra os capitalistas financeiros e uma atividade revolucionária generalizada”. As razões para essa “atividade revolucionária” não são de somenos, “a desigualdade económica está a crescer, os salários estagnam, e os proprietários do capital produtivo estão a sacar os benefícios dos avanços tecnológicos”. Talvez haja nisto uma constatação factual que conduza a algum exagero sobre a “atividade revolucionária”, mas o Financial Times costuma ser um bom áugure dos tempos modernos.
Um quarto para o lixo
Vamos então reescrever o Manifesto Comunista, dizem os dois académicos. Começam pela terminologia. Há 193 referências à “burguesia” e 93 ao “proletariado”, tudo para a reciclagem. Mas não se apoquente o leitor mais fiel à letra do texto, 74% fica igual, acrescentam os experimentadores só desprezam um quarto do texto. A questão está em fazer uma alteração essencial, que é nomear a nova classe transformadora, a dos acionistas das empresas, o acionariado, e o lugar da sua emancipação, a assembleia geral que reúne o capital da empresa e elege a administração.
Esses novos “ativistas” conseguirão um programa radical de mudança da “estrutura do capital”, esperam os dois profetas. Contam com a filantropia. Bill Gates, Waren Buffett e Mark Zuckerberg podem querer continuar a lavar a alma com donativos, tudo ótimo. O problema, lembra um estudo da Universidade de Stanford, é que a caridade não altera a desigualdade que cresce com a acumulação de capital e de poder numa parte muito pequena da população. No caso dos Estados Unidos, cerca de 160 mil famílias, que são os 0,1% mais ricos do país, tinham 7% do total do rendimento nacional em 1978, absorvem agora o triplo desse valor. Nunca na história moderna houve tal concentração de poder, o mesmo se passa nas outras economias mais poderosas, como estudou Piketty.
Ao mesmo tempo, a OCDE revela que a parte do trabalho no rendimento nacional decresceu nas principais economias entre 5 e 10% nos últimos 45 anos. É um abalo. A relação social degradou-se pela ofensiva neoliberal ao longo deste período. O economista Michael Roberts nota que estes dois traços, a acumulação de riqueza e o empobrecimento relativo do trabalho, estão inscritos no processo de globalização. É assim e vai continuar a ser assim, tanto quanto a finança o consiga – e tem conseguido tudo.
E o acionariado?
Podem então os acionistas constituir essa nova classe, tão poderosa que controle os ímpetos dos administradores, que mude os mandatos das assembleias gerais? Será que haverá uma nova “primavera dos povos” quando as empresas reunirem os seus órgãos estatutários e o poder emergente dos pequenos afastar a ganância dos grandes? A bem dizer, é mais provável que este nosso inverno penoso se prolongue por abril do que surja tal rebeldia refundadora.
O caso português talvez escape ao Financial Times, mas é somente um exemplo entre tantos outros. Veja-se os CTT, uma empresa que está a ser desmantelada à frente dos nossos olhos. Neste caso, os acionistas estão contentes: recebem em dividendos o dobro dos resultados das empresas, vão beneficiando de uma pilhagem sistemática que recuperou, num ápice, um terço do que investiram na privatização. A dividendocracia é isto mesmo, mas parece contrariar a aspiração dos nossos dois académicos: o acionariado contenta-se com o engodo, aceita generosos dividendos que ameaça o seu investimento, pois colocam a empresa em causa, reduzindo os investimentos futuros e a capacidade de readequação tecnológica. Desmantelar uma empresa e sugar os seus escombros é a operação fácil, assegurar a sua capacidade futura é a difícil. O que prefere o acionariado? O bolso.
(publicado no Expresso)