O europeísmo utópico

porJosé Gusmão

26 de janeiro 2017 - 12:25
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Uma esquerda que, como o Rui Tavares, divida o campo político entre “nacionalistas” e “cosmopolitas”, optaria por sacrificar os direitos dos seus cidadãos (...) em nome da pertença à UE?

Já há algum tempo que o Rui Tavares vem escrevendo artigos em que, de forma crescentemente agressiva, vai rotulando todos os que não estejam disponíveis para continuar a sacrificar a democracia, os direitos do trabalho e o Estado Social em nome de uma União Europeia outra, da qual não temos outro vislumbre senão a imaginação generosa dos que a sonham. Este raciocínio e o rótulo, inicialmente subtil, foi-se tornando crescentemente explícito e já chegou a este grau de clareza:

Se você defendeu que “não pode haver democracia para lá do estado-nação” ou que “os cidadãos do mundo são cidadãos de lugar nenhum”, você andou a promover ideias nacionalistas. Se sim, parabéns. Você ganhou por agora. Seja de direita, de esquerda, ou nem-uma-coisa-nem-outra, você ajudou a preparar o terreno conceptual para a vitória do presidente do país mais poderoso do mundo. De brinde, talvez lhe saia a presidente da França.
Queriam nacionalismo? Aí o têm
Rui Tavares, in Público (23/01/2017)

Não farei a maldade de replicar o expediente intelectual do Rui Tavares e acusá-lo de cumplicidade com toda a tragédia económica e social provocada pelas instituições da União Europeia, graças às quais a Europa tem experimentado o pior período económico e social da história do pós-guerra. Sei que o Rui Tavares defende instituições europeias diferentes e políticas europeias diferentes e que o seu projeto político é distinto e até oposto ao de quem domina a Europa.

Também não vou (neste texto) alongar-me sobre esta ideia de que o crescimento massivo da extrema-direita está relacionado, não com as consequências económicas e sociais da globalização liberal, mas com um “terreno conceptual” que as forças que se lhe opõem teriam ajudado a construir, reavivando sentimentos nacionais que (acha o Rui Tavares) teriam desaparecido.

No entanto, não é possível não recordar que a Globalização em geral, e a Integração Europeia em particular, coincidiram com uma gigantesca perda de direitos sociais e do trabalho. Nem que esses direitos foram conquistados no pós-guerra no quadro, veja-se lá, dos Estados-nação democráticos. Será tudo coincidência?

É porque este percurso histórico é tão útil que tenho tanta dificuldade em perceber o paralelismo do Rui Tavares entre a União Europeia e a Sociedade das Nações. Não tanto porque o paralelismo não tem sentido institucional (a Sociedade das Nações deu origem à Organização das Nações Unidas e não à União Europeia ou nenhum dos seus antepassados), mas sobretudo porque os objetivos e filosofia são totalmente diferentes. A União Europeia foi fundada na base da doutrina do Comércio livre e, na fase do Euro, por uma declinação contemporânea do Padrão-ouro, de tão má memória. As fábulas sobre a “Europa dos fundadores” são manifestamente exageradas. A União Europeia nasceu como um projeto liberal e os sucessivos tratados apenas reforçaram e cristalizaram essa identidade.

Mas falemos então das ideias atribuídas aos “nacionalistas” pelo Rui Tavares. A questão de saber se “pode haver democracia para lá do Estado-nação” não é bem a que é atualmente colocada pelo eurocéticos. A questão, ou as questões, são, do meu ponto de vista, três:

1. Existe, hoje, de facto, democracia fora do Estado-nação?

A resposta é um rotundo não. Na União europeia, as instituições democráticas não têm poder e as instituições com poder não são democráticas. O Parlamento Europeu tem poderes à beira da irrelevância, o BCE tem um poder literalmente ilimitado e isento de qualquer escrutínio democrático e mesmo as chamadas regras europeias servem essencialmente para criar um território de arbitrariedade em que a bonomia das instituições europeias depende da submissão das instituições nacionais (essas, sim, democráticas) a um programa de “reformas estruturais” que ninguém sufragou. Não há democracia na Europa. Em bom rigor, não há sequer Estado de Direito.

2. Existe uma possibilidade plausível de construção de uma democracia transnacional a partir da União Europeia?

A resposta é outro rotundo não. Não porque a União Europeia não tenha mudado. Tem mudado para pior, e vai continuar a mudar, também para pior. Não admira, aliás, que o Rui Tavares não se alongue particularmente sobre o seu plano para a democratização da União Europeia. É que não há plano, não há protagonistas, não há contexto, não há mobilização e não há sequer como. Os tratados da União estão blindados pela regra da unanimidade, já para não falar dessa regra chamada Alemanha. Não vai haver democratização da União Europeia nenhuma. Há anos que a crescente perda de soberania das democracias nacionais se faz com a promessa de democratização das instituições europeias. Em que se converteu essa promessa? No paleio da “ownership”, ou seja, na apropriação forçada pelos Estados-membros das reformas que Bruxelas impõe.

3. É possível proteger as democracias nacionais existentes enquanto aguardamos por essa democracia transnacional sonhada?

A resposta é um rotundo não e este “não” é provavelmente o mais importante. As instituições europeias em 2015 levaram a cabo um golpe de Estado na Grécia. Confrontadas com o resultado esmagador de um referendo que rejeitou as suas políticas, as instituições europeias arredaram esse momento democrático, recorrendo à chantagem da expulsão.

Esse ultimato coloca a toda a esquerda uma questão inevitável e inadiável: que posição ter perante esse cenário, que hoje sabemos ser possível, para não dizer provável? Uma esquerda que, como o Rui Tavares, divida o campo político entre “nacionalistas” e “cosmopolitas”, optaria por sacrificar os direitos dos seus cidadãos e a sua vontade democrática em nome da pertença à União Europeia, na esperança da sua transmutação futura? Só é possível responder “não” se se estiver, pelo menos, disponível e preparado para um cenário de ruptura com o Euro. E se a resposta for “sim”, então, meus amigos, olhem para a Grécia hoje.

É por estas razões que não partilho as ideias do Rui Tavares sobre Europa e Estado-nação. Mas, além disso, não tenho tanta pressa como ele em provocar uma fratura no campo político que está a reagir à austeridade. Faço política quotidianamente ao lado de gente que, tal como o Rui Tavares, não concebe a saída do Euro como uma possibilidade. E acho contraditório que esta linha na areia seja desenhada por quem tanto escreveu e falou sobre a unidade da esquerda. Basta observar que, se esta doutrina dos “aliados objetivos” tivesse presidido à atuação da esquerda portuguesa nos tempos mais recentes, Passos Coelho estaria hoje a governar o país.

Publicado em Ladrões de Bicicletas

José Gusmão
Sobre o/a autor(a)

José Gusmão

Eurodeputado e economista.
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