O estado é crítico. O governo perdeu o pé nas sondagens e sabe que as medidas de austeridade irão piorar a situação. Sócrates e o seu chico-espertismo governativo cansam cada vez mais. Assim, é sem grande surpresa que o PS volta a usar o trunfo que guarda sempre na manga. E o ás de rosa esgota-se na jogada táctica do costume: depois de governar à direita dramatiza-se à esquerda utilizando a ameaça do regresso ao poder da direita encartada que, aliás, a sua governação empurrou ainda mais à direita na ânsia do centrão de não parecer Dupont e Dupont.
Pode não ser suficiente para fazer o governo sair do lume brando em que a direita o quer cozer, mas é por se sentir num estado crítico que o PS utiliza agora como recurso o discurso do papel do Estado na economia. Para as cabeças brilhantes do PS, pareciam matar-se assim dois coelhos de uma cajadada só: cola-se crise ao PSD e ao seu “neo-liberalismo”, deixa-se a esquerda fora de jogo e faz-se supor que a única alternativa para salvar o que resta do Estado-Providência seria o apoio às medidas de austeridade do governo.
Da mesma têmpera, e utilizando-se também aqui o epíteto “neoliberal” face à Comissão Europeia, é a amostra de nacionalismo encenado no caso da PT: quem participou nos processos de privatização e propõe mais privatizações de empresas estratégicas nacionais, quem se gabava da paternidade do tratado de Lisboa, quem impôs sem referendo o tratado constitucional europeu e apoiou as legislações europeias liberais, quem participou na farsa da invenção do mecanismo ineficaz das “golden shares” uma boa desculpa para justificar a venda de empresas públicas uma vez que o Estado teria sempre um seguro de vida?
Mas para lá das jogadas de circunstância existe um debate importante a fazer sobre o papel dos Estados na gestão desta crise do capitalismo e sobre o consenso alargado entre sociais-liberais, neoliberais e conservadores. De um certo ponto de vista, a crise económica teria existido devido aos erros do paradigma neoliberal que deveria ser substituído por um intervencionismo mínimo para “regular os excessos dos mercados”. Esse sonho de um intervencionismo mínimo e essa utopia reguladora dos mercados que mandam nos governos, maquilham a realidade das intervenções estatais feitas de um não-neoliberalismo interesseiro que endividou os Estados e abriu caminho para o regresso das receitas neoliberais de emagrecimento forçado dos Estados. Será esse sonho um novo caminho cor-de-rosa ou será este não-neoliberalismo apenas uma arma dos “mercados”, ou seja, dos especuladores?
Pierre Dardot, por exemplo («Qu’est-ce que la racionalité néoliberal ? Sa Généalogie, la question de la démocratie, le project alternatif», citado por Jan Malewski em Inprecor 562/3, Junho/Julho de 2010), responde sugerindo que existe uma nova estratégia de dominação que consiste em utilizar o próprio Estado enquanto “instrumento neoliberal”. Desta forma, para além da simplicidade do neoliberalismo do Estado mais que mínimo, do Estado guarda-nocturno, dedicado apenas a funções de segurança, haveria uma tecnologia de poder mais eficaz que reconhece a necessidade de intervenção do Estado na economia “para criar onde não existe e de seguida para fazer respeitar onde existe a norma da concorrência”. Já não a tentativa de acabar directamente com a segurança social mas a criação de condições que empurram para os fundos de pensão privados o bolo mais lucrativo dos descontos do trabalho. Já não a ideia de acabar com os sistemas públicos de saúde ou de educação mas a prática de suprimir/reduzir o rentável remetendo para o privado.
Seja como for, o PS parece encaixar perfeitamente nesta descrição. Se não acabou com o Estado-Providência promoveu a mercantilização do bem comum. E não é um novo fôlego da direita crítica do Estado nem o estado crítico do PS que alteram isto. Porque no seu discurso sobre o Estado não existe a réstia de esquerda social-democrata que alguns esperam, estando prontos novamente para embarcar na lógica do mal menor, para além do manobrismo eleitoralista existem apenas os interesses do capital. E este é o discurso de poder mais cínico de todos porque vende a austeridade e a destruição do chamado “modelo social europeu”, porque impõe a mais brutal inversão nas relações de forças entre trabalhadores/as e patrões da história recente, sob a capa do nacionalismo contra a concorrência internacional e sob a capa da defesa do Estado-Providência.