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O enfado do bloco central

António Costa chamou-lhe gambozino. Eu chamo-lhe gato. O gambozino é uma ficção, este não é. E tanto não é que tem até várias vidas. O felino é o bloco central. E teve esta semana mais uma das suas tantas vidas.

Em julho, o bloco central tinha aprovado uma alteração legislativa que aumentou de 4.000 para 10.000 o número de subscritores de uma petição para que ela seja discutida em sessão plenária da Assembleia da República.

O Presidente da República vetou a mudança. E invocou para tal um imperativo de consciência cívica face a uma lei que considerou “um sinal negativo para a democracia”. Sim, é um sinal muito negativo, que a consciência cívica dos democratas só pode repudiar. O que PS e PSD sinalizaram com esta lei foi que a mobilização cívica que quer ter no parlamento um interlocutor é para eles um enfado, uma incomodidade.

Bem sabemos que esta obstaculização ao debate de petições em plenário faz parte de uma reforma mais vasta acordada pelo bloco central para esvaziar a Assembleia da República do seu papel insubstituível de lugar de debate político. Esta tentativa de dificultar o debate de petições em plenário veio de par com a supressão dos debates quinzenais com o Primeiro Ministro e com a retirada do plenário de outros momentos importantes de debate político. Tudo sinais negativos, tudo diminuição da intensidade da democracia parlamentar.

Face ao veto presidencial, o PS veio propor esta semana que não sejam 10.000 mas 7.500 os subscritores exigidos para que o plenário acolha obrigatoriamente uma petição. E o PSD, claro está, aceitou. O que começou mal, mal tinha que acabar. O PSD tinha proposto 15.000, mas a coisa era escandalosa demais, vai daí lá acordaram em 10.000. E agora, depois da justa reprimenda presidencial, adotaram o “racha ao meio” dos mercados e das feiras. Uma espécie de leilão em que, se não se arremata um obstáculo mais alto, arremata-se um obstáculo um bocadinho mais baixo, porque o que interessa é que haja obstáculo.

O que fica desta rábula triste é o enfado do bloco central diante da vontade da gente que se mobiliza na expetativa de que o parlamento debata os seus problemas e as suas pretensões. Em vez de mostrar o apreço que a democracia tem que ter por quem a exerce, o bloco central mostrou aversão à iniciativa popular, nem misto de aristocracia e de tecnocracia.

Depois, hão de vir com a lengalenga da necessidade de aproximar eleitores e eleitos. Pela amostra junta, ainda hão de inventar uma outra rábula em que, diminuindo a representatividade, engrandecem a democracia representativa.

Artigo publicado no diário “As Beiras” a 26 de setembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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