O dogma religioso como ferramenta de colonização sexual

porGabriel Coelho

18 de agosto 2025 - 21:13
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O dogma religioso, sobretudo quando aliado ao poder colonial, foi amplamente utilizado como instrumento de domínio cultural, político e sexual sobre os povos colonizados.

Não é necessário sermos especialistas no tema, nem sequer cidadãos particularmente bem informados para reconhecer que o dogma religioso, sobretudo quando aliado ao poder colonial, foi amplamente utilizado como instrumento de domínio cultural, político e sexual sobre os povos colonizados. Missões católicas e protestantes acompanhavam os colonizadores para “evangelizar” povos considerados “pagãos”. A conversão não era opcional: quem resistia era punido ou marginalizado. Em muitas sociedades africanas, a religiosidade tradicional aceitava uma diversidade de papéis de género e práticas sexuais, como a existência de figuras espirituais não-binárias ou relações homoafetivas. A colonização cristã e islâmica reprimiu sistematicamente essas expressões, impondo normas rígidas de género e sexualidade.

Entre os povos indígenas das Américas, é notória a presença de identidades de género diversas antes da colonização. Por exemplo, os Two-Spirit (em todas as suas variantes e nomenclaturas específicas de cada tribo) em muitas culturas nativas norte-americanas eram reconhecidos e respeitados como detentores de papéis sociais e espirituais importantes, mas foram perseguidos após a chegada dos europeus.

As instituições religiosas não só apoiaram, mas muitas vezes promoveram regimes coloniais e autoritários, legitimando a desigualdade, a escravidão e a repressão. A Igreja Católica, por exemplo, emitiu bulas papais (como a Dum Diversas, de 1452) que autorizavam a escravização de "infiéis" e justificavam a conquista dos territórios “não-cristãos”. Em muitos países colonizados, as escolas missionárias impuseram línguas e valores europeus às crianças locais, destruindo línguas e práticas culturais tradicionais — com ênfase especial em controlar a sexualidade e o corpo, sobretudo das mulheres.

Os valores morais impostos pelas religiões abraâmicas muitas vezes reprimiram qualquer forma de sexualidade que fugisse à heteronormatividade ou ao binarismo de género. A colonização religiosa criminalizou práticas sexuais não-reprodutivas, restringindo severamente a liberdade das pessoas quanto à sua sexualidade, género e corpo. E isto com consequências duradouras. Em países africanos, leis anti-homossexualidade ainda hoje em vigor são, em muitos casos, herança direta do colonialismo britânico ou francês, e não reflexos da cultura tradicional local. Muitas práticas espirituais e expressões de género que eram aceites ou sagradas foram rotuladas como “pecado”, “feitiçaria” ou “perversão”, sendo eliminadas à força. A violência sexual também foi usada como arma de dominação, com o apoio implícito (ou explícito) de discursos religiosos que culpabilizavam a vítima ou inferiorizavam o corpo do colonizado. Isto ainda hoje acontece em países onde mulheres e meninas vítimas de violação são obrigadas legalmente a levar a gravidez até ao fim, mesmo que resultem de agressão sexual ou coloquem em risco o seu bem-estar físico e psicológico. Em alguns desses países, as próprias vítimas podem ser presas se tentarem abortar e há mesmo registos de adolescentes encarceradas por este motivo.

O uso do dogma religioso e das instituições religiosas como instrumentos de colonização, repressão política e opressão sexual foi e continua a ser uma realidade em muitas partes do mundo. A imposição de uma moralidade rígida, neste caso ocidental e cristã, frequentemente em aliança com poderes estatais e económicos, contribuiu para o silenciamento, a perseguição e a destruição de culturas inteiras, incluindo as suas visões plurais sobre identidade de género e sexualidade.

Diante deste legado de silenciamento e apagamento, é urgente recuperarmos as vozes, saberes e práticas que foram violentamente subjugadas. Honrar as culturas que reconheciam a liberdade de ser e amar em múltiplas formas é também um ato de resistência contra as estruturas que ainda hoje perpetuam a exclusão e a injustiça. Corrigir a história não é apenas uma tarefa académica. É um compromisso ético com a dignidade humana, com a pluralidade das existências e com a construção de um futuro onde nenhuma identidade seja criminalizada por não caber num dogma. Que saibamos escutar o que foi silenciado e aprender com aquilo que tentaram apagar.

Gabriel Coelho
Sobre o/a autor(a)

Gabriel Coelho

Professor de Matemática e Ciências Naturais, co-criador do podcast Quarteto dos Três Ateus Miguel e Gabriel
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