Aconteceu a propósito da inauguração de uma queijaria em Aguiar da Beira no dia que precedeu o Dia do Trabalhador. Bem a propósito, vendo Dias Loureiro na plateia, Pedro Passos Coelho não resiste ao elogio público do amigo e correligionário de partido, natural desta histórica vila do distrito da Guarda. Em discurso livre, afirma que Dias Loureiro "conheceu Mundo, é um empresário bem-sucedido, viu muitas coisas por este Mundo fora e sabe - como algumas pessoas em Portugal sabem também - que se nós queremos ter uma economia desenvolvida, pujante, temos de ser exigentes, metódicos". Quando as estimativas apontam para os 4.691 milhões de euros de factura que os contribuintes pagarão pela vergonhosa e escandalosa ruína do BPN, o elogio público do primeiro-ministro a um dos seus principais responsáveis é um monumental "visto gold" à impunidade daqueles que se passeiam por cima da lei ou fazem chacota de um país que, por razões que a razão desconhece, por diversas vezes os elegeu democraticamente para servir algo que vagamente conhecerão como causa pública.
Quando fala sobre Dias Loureiro, a referência subliminar ou inconsciente de Passos Coelho ao "método" é um acto falhado (mas sem erro) que Freud poderia psicanalizar. No fundo, uma magnífica revelação da verdade. Quando Descartes escreveu o seu "Discurso do método", no século XVII, sistematizou três sonhos invernais que lhe anunciaram a ideia de um método universal para encontrar a verdade. A absoluta autoridade da razão para o conhecimento significativo, o desprezo pelos sentidos, a certeza da certeza pela matemática, o desprezo pelo qualitativo, o apreço pelo quantitativo e a inexistência de dúvidas. Como já foi dito pelo mais alto magistrado da nação (então, primeiro-ministro), "não tenho dúvidas e raramente me engano". Puro Descartes, puro método.
O método do "ataque ao BPN" e as suas ligações estão bem patentes no relatório da comissão de inquérito onde o nome de Dias Loureiro aparece por singelas 55 vezes. É quantitativo e o discurso do método não deixa mentir. A metodologia que mais assusta é aquela que não arrepia caminho perante as mais insuspeitas evidências, aquela que acelera as privatizações a todo o custo e não desistirá caso seja reeleita: TAP, CP Carga e EMEF, o sector da água, STCP, Metro, Carris. Quando sabemos que as intenções de privatização chegam ao Oceanário ficamos, de facto, cientes e sem dúvidas: só poderemos aguentar esta deriva de negociatas com os sectores estratégicos da economia portuguesa até às eleições, munidos a garrafas de ar com nitrox perante o perigo de narcose. Estamos no fundo, se é que não batemos nele.
A luta desenvolvida pela sociedade civil contra a corrida desenfreada à alienação de grande parte da alma mater da nossa economia teve, na passada sexta-feira, uma nota arejada. O Supremo Tribunal Administrativo aceitou julgar uma acção e uma providência cautelar interposta pela Associação Peço a Palavra, braço jurídico do movimento "Não TAP os olhos", que poderá significar areia na engrenagem na metodologia da privatização da companhia aérea. Depois da longa e irresponsável greve de (parte dos) pilotos, é altura de convocar o Estado de direito e de apelar aos sentidos. Negar Descartes. Dizer-lhe que foi um génio trôpego que não descobriu que o Homem pode voar se conseguir sentir à sua volta. Que há dúvidas que nos transcendem e que há razões que a razão desconhece. Fazendo valer a nossa indignação.
Raúl Castro prometeu voltar a rezar e Descartes não negava a existência de Deus. Pelo contrário. Mas se há alguma lógica nisto tudo e se a anestesia não for colectiva, temos alguns meses ainda para evitar que se confirme o que a deputada Mariana Mortágua afirmou aquando da apresentação das conclusões da comissão de inquérito ao BES: "as palavras de Passos Coelho (sobre Dias Loureiro) são a prova provada que o tempo tudo apaga se não forem tomadas medidas". Amanhã, quarta-feira, o novo acordo ortográfico passa a ser obrigatório em Portugal. A maioria dos países da CPLP ratificou o acordo mas não o pôs em prática. Eu, que não estou de acordo, espero pela decisão dos tribunais. A impunidade sente-se mais fraca quando a razão não lhe assiste e lhe abala o método.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 12 de maio de 2015
