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O coração gelado dos banqueiros é o menor problema
O Presidente queixou-se, o Governo manteve silêncio, como seria de esperar (se descontarmos o esbracejar sobre o aumento das taxas de juro, mas de molde a não incomodar o BCE com essas minúcias), só que a conjugação entre os lucros da banca e a generosidade dos prémios dos administradores destapou um dos nossos fantasmas nacionais. O abuso pela banca é a triste sina que nos está marcada na pele como um ferrete de servidão. Eles voltaram e, protegidos pela internacionalização do capital — dos quatro principais bancos três são estrangeiros —, fazem o que querem. E, como conhecem o Estado português, usam de um poder que nos seus próprios países não lhes é permitido. Não pergunte, por isso, como é que um banco catalão, norte-americano ou sino-angolano pode praticar aqui uma diferença maior entre os juros pelos depósitos e os recebidos pelos empréstimos do que nos seus países; a resposta seria a subserviência das nossas autoridades.
Santificado seja o mercado
Com topete admirável, o presidente da Associação Portuguesa de Bancos, numa entrevista à RTP, explicou que isto é só “o mercado a trabalhar”, recusando a ideia de que os bancos estejam “a lucrar mais do que deviam”. Portugal é o segundo país da zona euro com taxas mais baixas para os depósitos e o oitavo com taxas mais altas para os empréstimos, e, se o mercado “trabalha” assim, é decerto por ser animal matreiro. Sorte a nossa, o mercado é mais esperto em Portugal do que na Alemanha, França ou Espanha.
Talvez pela exposição desta contradição, Vítor Bento sentiu-se obrigado a uma vaga de entrevistas, e no “Dinheiro Vivo” até ameaçou quem critica esta distorção singular na zona euro dizendo que “a hostilidade aos lucros da banca reduz possibilidade de ajudarem famílias”. “Ajudar as famílias”, como compreendeu, é esse “mercado a trabalhar” com um diferencial de juros superior ao dos países europeus. Sabendo que os lucros da banca foram em Portugal de €2,5 mil milhões em 2022 e esse valor será largamente ultrapassado em 2023, a medida da “ajuda às famílias” está registada.
Portugal é o segundo país da zona euro com taxas mais baixas para os depósitos e o oitavo com taxas mais altas para os empréstimos, e, se o mercado “trabalha” assim, é decerto por ser animal matreiro
Na mesma entrevista, Bento entrou em detalhes sobre o que pensa das famílias e sentiu-se à vontade para, como presidente da Associação Portuguesa de Bancos, defender a política de redução salarial do Governo. A explicação é longa mas merece atenção: “O que pode gerar inflação é, por um lado, haver um aumento muito grande da procura e a preocupação dos agentes económicos de tentarem recuperar pela via nominal o rendimento perdido. Nunca vão recuperar totalmente, porque essa parte é incontornável. A única coisa que podem fazer é estabelecer níveis de equilíbrio com os preços cada vez mais elevados. Ou então passar as perdas para outros, ou seja, haver uma redistribuição de perdas em que uns se conseguem salvar à custa de outros, que vão perder mais do que aquilo que seria a sua quota. Convém é não tomar isto como um indicador pelo qual os salários têm de se ajustar.” Isto é maravilhosamente cristalino: havendo inflação, efeito misterioso da cólera divina e sendo, por definição, “incontornável”, tratem de “passar a perda para outros”, de modo que “uns se conseguem salvar à custa de outros” — desde que os salários não aumentem na proporção da inflação. Aqui tem uma visão do mundo, nua e crua, é o banqueiro dos banqueiros a falar.
Venha a mim o reino do prémio
Meu dito meu feito, passa-se “a perda para os outros”. E sobem-se os juros dos empréstimos, cerca de um terço das famílias está a pagar um crédito à habitação, a maioria com juro flexível, logo os “outros” são essa parte tão alargada da população que está amarrada à banca em condições inegociáveis, ao mesmo tempo que é imposta uma perda de valor real aos depósitos. Chamar a isto “mercado a trabalhar” é uma expressão curiosa. Alguém poderia lembrar-se de dizer que é simplesmente a imposição do poder absoluto.
“Passar a perda para os outros” tem ainda um outro significado poético: os administradores destes bancos receberam um aumento dos bónus de 93% referente a 2022 (este ano será melhor). Nos principais bancos, o total ultrapassou os €19 milhões. Há nisto uma justiça evidente, que os acionistas reconhecem e recomendam, os administradores conseguiram não só impor o aumento desse diferencial de juros como têm a anuência das autoridades, o Banco de Portugal é um túmulo e o Governo invetiva os selvagens que duvidam do efeito salvífico de lucros tão especiais. Pois os prémios aos vencedores não é o seu reconhecimento, que naturalmente inspira a sua sensatez recomendando “passar a perda para os outros” com restrição salarial?
Eça de Queiroz escreveu há 152 anos que “neste salve-se quem puder, a burguesia proprietária de casas explora o aluguer. A agiotagem explora o juro. [...] O país vive numa sonolência enfastiada. Não é uma existência, é uma expiação. Diz-se por toda a parte: ‘O país está perdido!’ [...] E aqui começamos, serenamente [...], a apontar dia a dia o que poderíamos chamar ‘o progresso da decadência’”. Que pessimismo, a “burguesia proprietária” a explorar o aluguer, onde se viu tal coisa? “Agiotagem”, como assim? E que o país “está perdido” quando isto é uma alegria, é o “mercado a trabalhar”, só mesmo num escritor que não conhece os bónus que enaltecem os que nos conduzem por esta via. Pois o povo que “pedale o dobro”, concluiu o sempre prestimoso Vítor Bento.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 12 de maio de 2023
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