O ciclo reprodutivo da pobreza

porMiguel Guedes

29 de dezembro 2022 - 9:40
PARTILHAR

O teste diagnóstico ao "elevador social" não passa do rés-do-chão: há um problema grave de exclusão dos mais pobres do Ensino Superior que eterniza o ciclo reprodutivo da pobreza.

As mais recentes estatísticas avançadas pela Direcção-Geral do Ensino Superior revelam um problema grave que se intuía pela percepção, mas que ganha agora visibilidade e confirmação em números preocupantes. Entre os cerca de 50 mil estudantes que este ano entraram no concurso de acesso, poucos são os que se enquadram no 1.º escalão do abono de família (medida que procura dar uma resposta imediata às famílias mais carenciadas). No último ano lectivo, apenas 1422 alunos neste patamar de pobreza entraram em universidades e politécnicos, ou seja, menos de 3% do universo de estudantes que ingressaram pela primeira vez no Ensino Superior. O teste diagnóstico ao "elevador social" não passa do rés-do-chão: há um problema grave de exclusão dos mais pobres do Ensino Superior que eterniza o ciclo reprodutivo da pobreza.

Muito "por culpa" da boa simplificação introduzida pelo Governo, que possibilita a automatização da atribuição de bolsas para os beneficiários dos três primeiros escalões do abono de família, chegamos a um novo máximo histórico de candidatos a bolsas de estudo (104.061 pedidos, até ao momento). Mas a prova é de "endurance" até que se chegue a um pedido de bolsa. A bolsa de estudo, uma ajuda devida, não evita o caminho árduo e, tantas vezes, implacável para lá chegar. No ensino privado, então, os números de estudantes nos primeiros degraus do abono de família são quase um exercício de ausência: 18. Dos 1422 alunos do 1.º escalão do abono de família, apenas dois entraram numa instituição de ensino privada. Dos estudantes que estão no 2.º escalão, apenas dez. Dos que pertencem ao 3.o escalão, seis alunos. Em famílias pobres com pais cujas qualificações não vão além do 9.º ano, apenas um em cada 10 filhos consegue concluir o Ensino Superior. Só Itália ostenta piores resultados que Portugal.

Os dados da OCDE que apontam para o subfinanciamento, disparidade social e regional no Ensino Superior português não são surpreendentes. Portugal fica abaixo da média da OCDE no investimento do PIB no Ensino Superior e a despesa total por estudante, no nosso país, é apenas 68% da média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. Se assim é no final do percurso académico, aterrador é pensar quantos e quantas ficaram para trás, ceifados pela impossibilidade económica, numa vida que não comporta reais oportunidades para todos, estimula a escolha forçada pelo mercado de trabalho e convoca o abandono escolar à porta das universidades.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 23 de dezembro de 2022

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
Termos relacionados: