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O “cavalo alado” israelita e o telemóvel de Dalai Lama

A origem do Pegasus, que foi objeto de uma grande investigação do jornal britânico The Guardian, está em Israel, a “start-up nation” habituada a aceitar todos os dispositivos securitários em nome do “combate ao terrorismo”.

Parece um filme de ficção científica, mas não é. Chama-se Pegasus e é um software de espionagem, ou um spyware, que entra no telemóvel como um vírus de que não nos damos conta - por exemplo, através de uma mensagem com um link, mas as últimas versões já nem disso precisam! – e que passa a ter acesso, virtualmente, a toda a nossa vida, transformando-se num instrumento de vigilância que funciona 24 horas por dia. Como? Copiando mensagens, gravando as nossas chamadas, registando até as nossas conversas pessoais através do microfone do telemóvel, filmando-nos através da câmara, sacando as nossas fotos, e-mails ou qualquer outra informação a que acedamos através do smartphone. Uma vez “instalado”, o software adquire as capacidades do administrador, tendo capacidade para interferir em todas as opções. Nunca houve nenhum instrumento assim, nas mãos de uma empresa privada e de vários governos.

A origem do Pegasus, que foi objeto de uma grande investigação do jornal britânico The Guardian, está em Israel, a “start-up nation” habituada a aceitar todos os dispositivos securitários em nome do “combate ao terrorismo”. Mais especificamente, grande parte dos fundadores da empresa detentora deste spyware, a NSO, vêm da Unidade 8200. Como explica o jornal Público, trata-se da “elite da elite, atrai os melhores alunos, e apresenta aos seus veteranos as melhores oportunidades no mercado de trabalho”. Na verdade, as práticas desta polémica unidade foram denunciadas, em tempos, por um grupo de reservistas que a compunham e que se recusaram a participar nas atividades por entenderem que o que se fazia em termos de vigilância dos palestinianos nos territórios ocupados “ultrapassava limites morais”. Informações recolhidas de conversas, nomeadamente de cariz sexual, eram utilizadas para chantagem, para ameaçar com a divulgação de determinados segredos, para recrutar desse modo gente que pudesse transformar-se em colaboracionista, para virar umas pessoas contra as outras.

As revelações do The Guardian têm gerado ondas de choque em todo o mundo. Segundo foi apurado, terão sido alvo de infeção informática e de espionagem por parte deste software israelita, vendido a agências e governos de outros países, quase duas centenas de jornalistas dos principais órgãos de comunicação de todo o mundo, membros de organizações da sociedade civil e mesmo governantes. Aconteceu na Hungria, com oposicionistas a Órban. O presidente francês, Macron, terá tido também o seu telefone infetado. Marrocos terá espiado jornalistas independentes de outros países. E na Índia, o líder da oposição, vários ministros, jornalistas, ativistas e até um juiz constavam da lista do Pegasus. Além disso, a Índia tentou espiar o Dalai Lama, mas para que isso fosse possível seria necessário que este tivesse um telemóvel... e não tem. Vai daí, os telefones de cerca de vinte líderes tibetanos no exílio, conselheiros de Dalai Lama, terão sido infetados pelo Pegasus, segundo uma notícia do jornal francês Le Monde, reproduzida no Expresso.

Toda esta história é grotesca e gravíssima, mas serve de alerta sobre a existência de um mercado de ciberespionagem que não pára de crescer. A Amnistia Internacional, de resto, já veio alertar que a detentora do Pegasus “é apenas uma entre várias empresas de uma indústria perigosa que tem operado à margem da legalidade durante demasiado tempo e que não pode continuar”. De facto, trata-se de um máquina de violações grosseiras de direitos humanos e de controlo político. Seria aceitável que estas revelações não tivessem consequências?

Artigo publicado em expresso.pt a 23 de julho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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