Nem só do lado de lá do Atlântico Norte se assiste a um processo de fascização da política e da sociedade. Embora com um estilo menos extravagante, também por toda a Europa as narrativas e ações dos atores políticos têm assumido indiscutível natureza autocrática.
Na Alemanha, quatro residentes berlinenses enfrentam processos de deportação por envolvimento em protestos contra o genocídio na Palestina – três são nacionais de países da UE e uma tem nacionalidade estadunidense. Nenhuma destas quatro pessoas foi condenada por qualquer crime, sendo que a única com, efetivamente, enfrentou julgamento foi absolvida pelo tribunal. Todavia, nada disso é relevante para as autoridades alemãs, que fundam as ordens de deportação no alegado apoio dos envolvidos ao Hamas e na alegada ameaça à segurança pública. Não são dadas provas de nenhuma dessas alegações, as quais legitimam, segundo as autoridades alemãs, a suspensão das liberdades constitucionais de expressão e reunião dos acusados durante a pendência do processo de deportação.
As ordens de deportação foram emitidas depois do departamento responsável da Agência de Imigração de Berlim ter sido politicamente pressionado a proceder à respetiva emissão. Tanto o responsável pelo departamento como o presidente da agência se opuseram e resistiram inicialmente ao pedido que lhes havia sido dirigido, notando que nenhum dos três envolvidos tinha sido alvo de condenação penal. Também na Alemanha, portanto, o antissemitismo é instrumentalizado para manufaturar justificações para a deportação de dissidentes e para reprimir o protesto. Esta atuação tem-se, aliás, propagado por toda a Europa, com as autoridades nacionais a mobilizar argumentação baseada em "delitos políticos" para perseguir, reprimir e deportar pessoas de forma ilícita e arbitrária.
O Estado de Direito e a democracia liberal sucumbem por todo o lado numa Europa que continua alegremente a afogar-se na sua própria ilusão. Na Estónia, o parlamento acaba de aprovar, por larga maioria, um diploma legislativo que limita o direito de voto da minoria russa. A Hungria de Orbán recebeu Netanyahu, tendo-se retirado do Tribunal Penal Internacional depois de anunciar publicamente que não iria respeitar o mandado de detenção que sobre ele impende por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Enquanto defende a suspensão do direito de voto nas instituições da UE de Estados-membros com políticas antidemocráticas, nomeadamente a Hungria, o chanceler alemão Friedrich Merz alinha-se, precisamente, com a posição húngara, afirmando que assegurará que Netanyahu pode livremente visitar o país. Estes posicionamentos surgem, recorde-se, num momento em que foram encontrados, numa vala comum em Gaza, 15 corpos de trabalhadores humanitários executados pelo exército israelita. Entretanto, no Reino Unido, o governo anunciou cortes bilionários nos sistemas de providência social, em especial na área da saúde e nos apoios a pessoas com deficiência. O ataque aos direitos sociais vem, portanto, do próprio partido trabalhista, incidindo violentamente sobre os grupos mais vulneráveis da sociedade britânica. O mesmo governo trabalhista tem ordenado uma série de rusgas a locais de trabalho de trabalhadores estrangeiros, donde resultaram cerca de 800 detenções só em janeiro, um aumento de mais 70% em relação a janeiro de 2024. Em Itália, por sua vez, o governo de Meloni aprovou um diploma que permitirá a utilização de dois centros de detenção para requerentes de asilo construídos na Albânia, que têm estado inutilizados devido a constrangimentos jurídicos associados à duvidosa licitude do acordo celebrado entre as autoridades italianas e as autoridades albanesas. Esta estratégia parece ser partilhada pela própria UE, que anunciou a criação de "hubs de retorno" em países terceiros com o objetivo de facilitar a deportação de requerentes de asilo.
A perseguição às minorias, desde a limitação do direito de voto até à deportação, passando pela retirada de apoios de sobrevivência; a repressão da oposição política, incluindo a detenção indiscriminada de pessoas e a restrição das liberdades de manifestação e expressão; a desconsideração das garantias legais e do processo devido; e o menosprezo arrogante pelas instituições e ordem jurídica internacionais são indícios inquestionáveis do ressurgimento do fascismo nas sociedades europeias. O fascismo, que nunca deixou de subsistir entre nós, embora de forma latente, reemerge hoje, como no passado, à boleia da displicência e do calculismo do "extremo centro" (na expressão incisiva de Tariq Ali). Esta dialética tem operado a dois níveis. Por um lado, os partidos centristas têm convivido com relativa tranquilidade com a ascensão de partidos fascistas, a qual lhes permite congeminar um inimigo pária, em relação ao qual podem encenar horror democrático. Esta dinâmica tem-se desenvolvido de tal forma que o debate público sobre concretas políticas e propostas partidárias está quase esvaziado, tendo sido colonizado pelo infindável debate sobre em que partido "moderado" devem os cidadãos preocupados votar para afastar o espectro autocrático. Por outro lado, a narrativa centrista absorveu, com a serenidade de quem não tem qualquer escrúpulo moral, os tópicos "clickbait" do discurso fascizante da extrema-direita – anti-imigração, patriarcal, nacionalista e, acima de todo, vitimizador dos grupos e classes privilegiados.
Como alegoricamente nos avisou Kafka, o bacilo fascista nunca foi eliminado; esteve apenas adormecido, a aguardar condições ideais para se propagar. Agora que o contágio começou, o medo do nome só contribuirá para acelerar o processo em curso, propulsionando, precisamente, o ilusionismo moral que nos trouxe aqui.
Artigo publicado em Sabado a 6 de abril 2025
