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O benchmarking e a social-democracia

O diretor da Águas de Portugal, João Carvalho Mendes, é um indivíduo moderno. Por isso, em vez de fazer coisas fora de moda como “contratos de trabalho”, prefere fazer outsourcing como uma forma de benchmarking. Os termos são do próprio.

Dizer outsourcing é uma outra forma de fazer o naming da subcontratação ou da externalização. No caso, externalizam-se tarefas essenciais para o cumprimento da missão da empresa. Ou seja, a Águas de Portugal tem uma necessidade permanente de pessoas para atender as chamadas dos clientes, por exemplo, mas em vez de ter trabalhadores seus, tem trabalhadores intermediados por outras empresas para fazer o serviço. O mesmo acontece, outro exemplo, com a contabilidade. Quem trata das faturas das Águas do Norte trabalha nas instalações das Águas do Norte, recebe ordens das Águas do Norte e executa funções permanentes para as Águas do Norte, mas não é trabalhador das Águas do Norte. Bizarro? Não. É essencial para fazer benchmarking.

O benchmarking é uma prática super moderna dos gestores que, como João Mendes, estão alinhados com o ar dos tempos. Trata-se basicamente de um processo de comparação de desempenho. Neste caso, a Águas de Portugal, que precisa dos trabalhadores que tratam das faturas ou que atendem os telefones, põe uns a trabalhar com vínculo à Águas de Portugal e outros a trabalhar por via de outras empresas, no mesmo local. Objetivo: incentivar trabalhadores e empresas a competir por serem a mercadoria que sai mais barata. Em função deste benchmarking, o Presidente do Conselho de Administração decide se, para essas funções que são permanentes, prefere que o trabalhador seja internalizado ou externalizado. A ideia é ótima, explicou-nos João Mendes no Parlamento. Permite uma análise com base nos mais puros critérios de mercado – o que dá sempre jeito para “emagrecer” a empresa. Só tem dois pequeninos problemas, direi eu. É que é ilegal e é uma afronta.

É ilegal porque o outsourcing existe para se adquirir serviços a outras empresas especializadas relativamente a funções que não correspondem às essenciais da empresa. Quando uma empresa de outsourcing é utilizada apenas como uma fornecedora de mão-obra, isso é um falso outsourcing. Mas além disso, está ainda por cima em curso um Processo de Regularização dos Vínculos Precários da Administração Pública que inclui as Águas de Portugal. Ou seja, há uma lei específica que obriga a empresa a vincular os trabalhadores precários. Na Águas de Portugal faz-se ao contrário: não se vincula, precariza-se. Não se regulariza, externaliza-se. E de forma assumida e com orgulho.

Claro que isto é também uma afronta às pessoas e ao serviço público. A gestão de uma empresa pública deve ser exemplar pelo menos sob três critérios: o serviço que presta ao cidadão; a transparência na utilização dos recursos públicos; o respeito pela lei, desde logo a lei do trabalho. João Mendes, que já foi Secretário de Estado num Governo do PS, que esteve entretanto na área financeira do Grupo Amorim e depois foi diretor do Global Business Development da Galp Energia, é um homem do mundo dos negócios, que pensa nos trabalhadores em termos de benchmarking. Na Águas do Norte, uma empresa do mesmo grupo, está em curso um deplorável processo de assédio moral contra os trabalhadores, utilizando a degradação das suas condições de trabalho, a violação da sua privacidade e a chantagem sobre a obrigatoriedade da “mobilidade geográfica” para os pressionar a sair. Objetivo: externalizar tarefas. A gestão moderna é assim.

Hoje mesmo, Pedro Nuno Santos, o Secretário de Estado que, no Parlamento, faz a articulação com a maioria, escreve um artigo sobre os caminhos da social-democracia e a necessidade de o PS fazer uma crítica à terceira via e ao que ela representou, designadamente quanto aos “excessos liberalizadores” e à descaracterização do “ideário ideológico, programático e linguístico”. Oxalá o faça. É que esse “excesso” e essa “descaracterização”, que toma o mercado como a medida de tudo, que pensa com as categorias mentais da Direita e que é permeável aos mesmos interesses não é, infelizmente, uma característica do passado. O Administrador das Águas de Portugal, por exemplo, foi nomeado por este Governo. O administrador das Águas do Norte, o que precariza e persegue trabalhadores, também foi nomeado por este Governo e, surpreendentemente, ainda não foi demitido. Um e outro são uma afronta aos princípios que estão na origem da atual solução política. Por isso, é inevitável a pergunta: serão uma afronta para o PS? A resposta, mais que em palavras, será dada pelos gestos que forem tomados ou não.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 4 de maio de 2018

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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