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O banqueiro e o taberneiro

Não podemos nem devemos confundir a deriva autoritária e conservadora deste Governo com deveres de cidadania ou princípios de equidade fiscal. Alhos não são bugalhos e banqueiros não são taberneiros.

Que a “esquerda” e a “direita”, sobretudo a direita liberal que inspira este governo, sempre se bateram por visões diferentes do sistema fiscal não é novidade para ninguém. A equidade e justiça fiscais nunca foram apanágio de quem defende um estado mínimo, e para quem as desigualdades sociais são o subproduto natural do livre funcionamento do sistema económico.  Há até quem defenda que são a força motora do crescimento e do empreendedorismo!

É exatamente por isso que os termos do debate sobre a fiscalização do pedido de faturas se tornam confusos e muito equívocos.

Não tenhamos dúvidas sobre o assunto. Um país com menores desigualdades, melhores serviços públicos e, portanto, melhor nível de vida, precisa de um sistema fiscal forte e justo. Para isso, fraude deve ser combatida, e uma das formas de o fazer é através da fiscalização das formas de faturação, especialmente em negócios com tendência para a informalidade (construção civil, por exemplo).

Carregar indiscriminadamente na fatura fiscal dos trabalhadores, reformados e pequenos negócios, enquanto se incita ao auto policiamento, não respeita nem o primeiro princípio nem o segundo.

Se a justiça fiscal estivesse de facto em causa, o aumento de impostos não seria feito no IVA (um imposto regressivo que não respeita o princípio da capacidade de pagar), nem nos escalões intermédios de IRS. Incidiria antes sobre transações financeiras, riqueza e rendimentos de capital.

O mesmo se aplica ao emprego e o “dinamismo económico”. Uma distribuição da carga fiscal que sobrecarrega o trabalho, o consumo e a economia produtiva (basta pensar no IVA sobre a restauração ou energia) em detrimento das atividades especulativas tem graves efeitos recessivos, como de resto estamos a presenciar.

Por outro lado, se a preocupação fosse o combate à fraude fiscal com vista ao fortalecimento de um tal sistema mais equitativo, então teríamos imenso por onde começar: o enriquecimento ilícito, os offshores, os acordos de dupla tributação, as formas de taxação das SGPS ou sigilo bancário são terreno fértil para quem se interesse pelo tema. Para além, é claro, das formas de faturação e contabilidade da atividade privada em geral. Mas tudo isto requereria mais meios de fiscalização ao serviço das autoridades tributárias e, sobretudo, mais vontade política.

Por último, se o que está em causa é “dar o exemplo”, a construção de um espírito cidadão mais congruente com os princípios de um estado verdadeiramente democrático, então julgue-se o Ricardo Salgado, pelos milhões de fuga ao fisco, o BCP e o BPN pelos negócios nos offshores, a PT pelos impostos que não pagou na venda da Vivo, ou todas as empresas cotadas na bolsa portuguesa que transferiram a sua sede para a Holanda.

O que não podemos, nem devemos, é confundir a deriva autoritária e conservadora deste Governo, na obsessão de consolidar o défice custe o que custar, com deveres de cidadania ou princípios de equidade fiscal.

Alhos não são bugalhos e banqueiros não são taberneiros.

Pagar impostos é um dever de qualquer cidadão, e quem não o fizer deve ser punido. Se me perguntarem, denunciar os casos de lavagem de dinheiro e fuga ao fisco dos grandes negócios deste país também é um dever de cidadania – embora o Governo não concorde (é por isso que chama membros do BPN para o seu executivo e concede amnistias a criminosos fiscais). Fazer de cada um de nós policia do imposto que pagou (ou não) a taberna do lado pelos quatro cafés que vendeu não é um dever democrático.

P.S. Se o objetivo é contestar o governo, aplaudo a coragem política de quem o faz a cantar a Grândola. Parece-me mais simbólico e eficaz que a reprodução de qualquer outro comentário homofóbico e sexista. Afinal, a revolução que precisamos não é apenas fiscal.

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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