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"O aparecimento da UBER não pode ser desligado da existência de um vazio legal"

Como foi possível que, ao longo de todo este tempo, esta atividade ilegal tenha sido exercida, violando decisões expressas dos tribunais?

A Assembleia da República é hoje chamada a pronunciar-se sobre duas Petições de sinal contrário, e que, em síntese, versam sobre a mesma questão: a atividade da UBER em Portugal. 

Trata-se de um exercício normal em democracia, em que as instituições devem responder perante as interpelações que os cidadãos lhes fazem e, por isso, não posso deixar de cumprimentar os representantes de cada uma das Petições, e de saudar a sua iniciativa pois, independentemente da opinião que possamos ter sobre cada uma delas, ambas têm o mérito de suscitar uma reflexão sobre o tema. 

E, quaisquer que sejam as razões de uma ou de outra parte, há uma realidade indesmentível: a UBER exerce atividade no país há praticamente três anos, à margem de qualquer enquadramento legal. 

Esse simples, mas significativo facto, não pode deixar de justificar uma primeira interrogação: como foi possível que, ao longo de todo este tempo, esta atividade ilegal tenha sido exercida, violando decisões expressas dos tribunais, como foi o caso da sentença do Tribunal da Comarca de Lisboa de 24/04/2015 contra a atividade da UBER?

Ao contrário do que alguns repetem, como se o senso comum fosse indiscutível, a justiça neste caso não foi lenta, foi sim letra morta. E quem a devia fazer cumprir– autarquias, ACT, polícias, governos – não o fez. E, segundo o próprio responsável da UBER, em novembro de 2016, haveria cerca de 2.500 veículos a operar em Portugal. TODOS ILEGAIS, mas existem.

É verdade que o aparecimento da UBER não pode ser desligado da existência de um vazio legal e também do facto da emissão de licenças para a operação de táxi, especialmente em Lisboa e no Porto, estar bloqueada há muitos anos. Esta circunstância teve, mais ou menos como consequência, a emergência de um mercado paralelo de licenças de táxi, que distorceu gravemente a concorrência, favoreceu a concentração empresarial e agravou a precariedade no trabalho para quem trabalha. 

Foi nesse contexto que se inscreveu a UBER, oferecendo serviços de chamada de veículos ligeiros para o transporte individual de passageiros através do acesso a uma plataforma digital em tempo real, com resultados satisfatórios para o passageiro, sobretudo ao nível da maior transparência nas tarifas e na perceção dos percursos. 

Mas ficar por aqui seria olhar apenas para a árvore e não ver a floresta. Hoje em dia, já se percebeu que esse serviço de transporte não apenas é uma fraude económica, incumprindo diversas normas legais, quer ao nível da fiscalidade, como ao nível da legislação do trabalho, como nunca será o “el dourado” anunciado, onde se atingiriam valores miríficos da ordem dos 1.400€/mês.

Mesmo com um atraso de mais de um ano face ao momento em que estas petições entraram na AR, pode ser benéfico voltar agora a este debate. É que a realidade da escravatura moderna que a UBER tem representado para com aqueles que nela trabalham, confirmada pelos baixíssimos rendimentos do trabalho que, em Portugal, tal como em diversos países da Europa, não chegam ao salário mínimo, ainda por cima a troco de horários de trabalho típicos da era pré-industrial, que atingem as 70 horas semanais, são exemplos que não podem deixar de nos interpelar e de nos convocar para legislar em favor de um serviço de transporte público individual  de passageiros, que elimine práticas abusivas de “empresas-abutre” como a UBER e  promova a transparência nas tarifas e nos itinerários, a equidade no acesso à atividade de motorista profissional em automóveis ligeiros, o respeito dos direitos de quem trabalha e a modernização do serviço de transporte em táxi ou em veículos equivalentes.

O Governo anuncia para breve nesta Assembleia uma proposta de lei para um novo regime jurídico das plataformas eletrónicas que organizam esta modalidade de transporte de passageiros nos chamados veículos descaracterizados (TVDE). Como sempre, o BE não deixará de contribuir com propostas para uma legislação que acabe com o vazio legal existente e respeite os direitos dos seus trabalhadores e dos utilizadores do transporte público, individual ou coletivo. 

Sobre o/a autor(a)

Economista de transportes
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