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O absurdo da prisão preventiva de Rui Pinto

Talvez a maior das ingenuidades seja pensar que o combate ao crime financeiro não vai suscitar vinganças pesadas sobre os denunciantes dos crimes financeiros.

Prefiro não endeusar Rui Pinto, dado que alguns dos métodos que terá usado poderão ser instrumento de violações de direitos que são importantes para a nossa vida. Ele será julgado por essas acusações, incluindo a mais constrangedora, a de tentativa de extorsão. Mas não posso ignorar, nem devo, que existe uma sanha especial contra ele, que se soma a uma aflitiva incompetência ou falta de vontade de investigar crimes financeiros que corroem a nossa sociedade. Essa sanha é evidente, pois nada justifica a medida excecional de prisão preventiva, a não ser que o tribunal entenda que há um risco razoável de ele cometer os mesmos atos (também difícil será dizer que poderia usar a liberdade para ocultar o que fez, dado que a acusação assegura que tem toda a informação inculpante). Rui Pinto deve ser libertado e responder no seu julgamento, quando for o dia.

De olhos bem fechados

Se esta intensidade persecutória não fosse sem precedentes, a inexistência de investigações a partir da informação disponibilizada, que exige, essa sim, medidas consequentes, poderia surpreender. Mas é o contrário que se passa: noutros países, as informações de Rui Pinto foram usadas para atacar o crime. O facto é que nove países, incluindo o Reino Unido, Bélgica, França, Espanha e Holanda, iniciaram investigações a partir do Football Leaks. Espanha recuperou mais de 40 milhões de euros de impostos devidos. Cristiano Ronaldo e Mourinho aceitaram as condenações e as multas. Outros futebolistas e agentes também. Em Portugal, ao que se saiba, nada aconteceu, o que só pode inquietar quem se preocupa com a luta contra o crime de colarinho branco.

Com as revelações sobre Isabel dos Santos ocorreu algo diferente, sobretudo porque alguns bancos fecharam as portas aos seus negócios, empresas de auditoria fugiram, advogados e administradores demitiram-se e sócios cortaram as pontes. Não sei se haverá investigação criminal, mas devia. Branqueamento de capitais e manipulação de contas, prejudicando empresas e outros acionistas, são assuntos graves. Ora, se houver caso criminal, é por ter havido a informação de Rui Pinto que permitiu (ou obrigou) que houvesse uma investigação.

Cá se pagam

Nesta saga, Rui Pinto não é caso único. Além da perseguição a Assange, a Snowden e a Manning, os mais conhecidos dos hackers ou denunciantes de crimes financeiros, outros houve que sofreram penosas travessias do deserto. Rudolf Elmer, que tinha trabalhado num respeitado banco de Zurique, o Julius Bar, denunciou as suas operações nas ilhas Caimão à WikiLeaks. Foi interrogado 48 vezes por autoridades policiais e judiciais, foi objeto de 70 decisões de tribunal, passou seis meses em prisão solitária e foi condenado a pagar uma indemnização de 325 mil dólares aos seus acusadores. Antoine Deltour, que revelou dados da PriceWaterhouseCoopers que foram expostos no Lux Leaks, provando os acordos do governo luxemburguês para garantir impostos mínimos a algumas multinacionais, foi condenado a pena de um ano de prisão por violação de segredo comercial (mais tarde foi-lhe atribuída a condição de “denunciante” e aliviado da pena).

Talvez a maior das ingenuidades seja pensar que o combate ao crime financeiro não vai suscitar vinganças pesadas.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 1 de fevereiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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