Nunca foi "olho por olho e dente por dente"

porJoana Mortágua

16 de setembro 2022 - 15:30
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Aqui não há justiça: enquanto uns arreganham os dentes para proteger os lucros do seu negócio, outros perdem o direito à educação. A pergunta que se impõe é: o que vai fazer o governo para proteger os Estudantes do Ensino Superior.

Há três dias saíram as listas de colocados na 1ª fase do Ensino Superior. O Governo rejubilou com o segundo maior número de colocados de sempre: dia 11 de setembro entraram 50 mil estudantes no Ensino Superior.

Mas a realidade depressa atropelou o contentamento do Governo, coisa que aliás se tem mostrado cada vez mais frequente numa maioria absoluta para quem falhar ao país é privilégio de auto-suficiência.

Porque “colocado” é o início de uma jornada em que conseguir uma vaga é cada vez mais a parte fácil. E não me refiro a desafios académicos, a exames difíceis, nem a noites viradas nos livros: refiro-me às razões que levam mais de 10% dos alunos do ensino superior a desistir da licenciatura logo no primeiro ano. Um em cada dez, ou seja, pelo menos 5 mil dos 50 alunos agora colocados.

Refiro-me ao facto dos estudantes universitários serem um dos grupos da população que mais recorreu a instituições sociais durante a pandemia; refiro-me ao peso de um estudante universitário no orçamento das famílias, muito superior ao da União Europeia, e à escassez da política de bolsas, bastante inferior à média europeia.

Mas voltemos aos 50 mil alunos agora colocados. Pelas estatísticas, 21 mil desses estudantes estão deslocados da sua área de residência e não conseguem ultrapassar o primeiro obstáculo de entrada na faculdade: conseguir alojamento.

No início deste ano letivo havia menos 80% da oferta de alojamento no mercado de arrendamento e a preços 10% mais caros. A diminuição do número de quartos é transversal a todo o país. O que aconteceu aos quartos que eram alugados a estudantes? A Federação Académica de Lisboa e os senhorios deram a mesma resposta: “Ou vão para os nómadas digitais ou para o alojamento local”.

É neste caldo que as declarações da Associação Lisbonense de Proprietários aparece como tempero agressivo. É importante discutir o que elas significam num mercado de habitação completamente liberalizado. Mas não sem antes deixar claro que o absurdo dos proprietários não iliba as responsabilidades do Governo na falta de apoio aos estudantes universitários e na crise de alojamento que já se fazia sentir.

Porque o governo deixou os estudantes à mercê do mercado de arrendamento inflacionado e especulado. Porque viu esse problema a agravar-se nos últimos anos e pouco ou nada fez. Porque não criou serviço público. Porque numa coisa os liberais têm razão: o mercado é assim, não reconhece direitos nem ajuda ninguém, esse é o papel do Estado e é por isso que ele tem de ser forte.

A retaliação dos proprietários sobre os estudantes sobre quem quer arrendar casa nos centros urbanos é injusta e é expressão de um privilégio. Mas não é nova. Quem se esqueceu dos anúncios de aluguer de contentores de 12 metros quadrados por 600 euros por mês em Marvila, Lisboa. Ou das várias residências estudantis privadas que brotam como cogumelos, de que é exemplo a novíssima NIDO, no Campo Pequeno, em que os preços começam nos 625 euros por mês para quartos com 12 metros quadrados — até aos 820 euros por mês para os estúdios Deluxe Plus, com 27 metros quadrados, kitchenette e casa de banho privada.

Não, ao contrário do que dizem os proprietários, não é – nem nunca foi – “olho por olho e dente por dente”. Esse método de justiça é bárbaro e arcaico, mas pressupõe uma igualdade: no fim, ambas as partes ficam cegas e desdentadas. Não é o caso, aqui não há justiça: enquanto uns arreganham os dentes para proteger os lucros do seu negócio, outros perdem o direito à educação.

A pergunta que se impõe é uma: o que vai fazer o governo para proteger os Estudantes do Ensino Superior, não só da crise do alojamento mas do aumento generalizado dos preços.

Outros países implementaram transportes gratuitos, planos de apoio específicos, ou estão a atualizar as bolsas e os apoios sociais. O Governo não apresentou uma única medida de apoio aos estudantes do Ensino Superior. As bolsas e os complementos são comidos pela inflação e o Governo nada faz, o preço do alojamento é proibitivo e o Governo assobia para o lado. Aliás, desistiu dos anúncios que em tempos prometiam alguma coisa de esquerda para o ensino Superior, como acabar com as propinas.

A única certeza que os estudantes do superior têm é que o Governo se esqueceu deles.

Artigo publicado no jornal “I” a 15 de setembro de 2022

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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