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Novo ano, velhos hábitos

O período de confinamento a que estivemos todos sujeitos (incluindo a comunidade académica) podia e devia ter servido de alarme para o ano letivo que agora inicia ter sido preparado com outra prudência e antecipação. Da parte do Governo, foi uma oportunidade perdida.

No início de setembro, foi noticiado um facto positivo. Atingimos o maior número de candidaturas ao Ensino Superior (62.675). Para isso contribuíram medidas como a descida das propinas (que, nos últimos dois anos passaram de um limiar máximo de 1068€ para 697€) ou o aumento do número de bolseiros (que, agora em setembro, poderão contar com cerca de 10 mil bolsas mais). Foram propostas pelas quais o Bloco se bateu e são hoje conquistas dos estudantes.

Porém, evitando ser advogado do diabo por mero desporto, aconselho alguma prudência nos festejos. Vivemos uma crise brutal e o número de candidaturas pode não espelhar o número de inscritos e muito menos o número real de estudantes a prosseguir e completar estudos. É evidente que descarto, a priori, leituras conservadoras como a que o ex-Secretário de Estado do Ensino Superior Ferreira Gomes assina num artigo1 da sua autoria e que se baseia na ideia de que há Ensino Superior a mais. Tudo isso cheira a Troika, tudo isso cheira a bafio.

Uma das explicações2 para o fenómeno aponta para a queda da oferta de emprego e, por isso, a continuação dos estudos como alternativa ao plano anteriormente delineado. Este tese refuta a leitura de Manuel Heitor, que acredita, num momento de crise aguda como aquela que vivemos, a população continua, sem pestanejar, a acreditar que é no Ensino Superior e na sociedade do Conhecimento que encontrará as soluções individuais e coletivas para os desafios do futuro. A população encontrará essas respostas no espaço académico quanto mais o espaço académico corresponder aos seus anseios e quanto mais abrangente conseguir ser do ponto de vista social, interclassista, territorial e cultural.

Durante estas semanas, decorrem em todas as Faculdades e Escolas Superiores do país as inscrições. No final desse processo, poderemos fazer um primeiro balanço mais objetivo e próximo da realidade. O abandono escolar no Ensino Superior continua a ser um dos flagelos sociais entre as gerações mais jovens. Para o seu combate, não contribui o Ministro Manuel Heitor dizer que a pandemia até ajudou ao aumento do número de candidaturas. Continuamos longe da média da OCDE no que toca à percentagem de cidadãos a ingressar neste grau de ensino e, ou muito me engano, ou a pandemia vai ser uma inimiga neste caminho em nome da Democracia e da igualdade de oportunidades.

Já com o ano letivo a decorrer para milhares de estudantes do Ensino Superior, veio o Governo, a tarde a más horas, anunciar uma parceria com a indústria hoteleira que alarga a oferta de camas em mais 4500 e ainda o reforço do complemento de alojamento. Os noticiários apresentaram com pompa e circunstância as medidas do Governo para o alojamento estudantil. Sobre isso, convém não esquecer o trajeto de cada uma das medidas. A utilização de camas disponíveis em Pousadas da Juventude e alojamento privado tinha sido produzida pelo Bloco em Junho, aquando da apresentação de um pacote de emergência social para o Ensino Superior. Nessa altura, foi o voto do Partido Socialista que garantiu o chumbo da medida. Já o complemento de alojamento é uma medida aprovada em sede de especialidade do Orçamento do Estado para 2020. Por outras palavras, não foi iniciativa do Governo mas sim da Assembleia da República. No momento dessa discussão parlamentar, o atual Secretário de Estado do Ensino Superior João Sobrinho Teixeira proferiu um discurso inflamado contra a ideia. Hoje parece ter gosto em apresentá-la para as televisões que acompanham a comitiva do Governo enquanto visita uma Universidade.

O alojamento é um dos exemplos do que falta. A par dos desempregados, os estudantes do Ensino Superior foram o segmento social que mais procurou apoio de saúde mental. Nem por isso esta comunidade pode contar com um reforço de investimento para esta área fundamental da Ação Social e da Saúde. O período de confinamento a que estivemos todos sujeitos (incluindo a comunidade académica) podia e devia ter servido de alarme para o ano letivo que agora inicia ter sido preparado com outra prudência e antecipação. Da parte do Governo, foi uma oportunidade perdida.


Notas:

Sobre o/a autor(a)

Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto
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