A Democratização alcançada com o 25 de Abril de 1974 deu início a uma verdadeira transformação no campo das garantias penais e processuais. A Constituição de 1976 consagrou os princípios do Estado de Direito democrático, assegurando direitos fundamentais como a presunção de inocência, o direito à defesa e ao contraditório e a independência do poder judicial, abrindo caminho para a legislação que desenvolveu e densificou aqueles princípios.
Sucede, porém, que se assiste hoje a uma preocupante inversão dessa trajetória. Os retrocessos nas políticas criminais marcadas pelo punitivismo, pela marginalização de populações vulneráveis e pela erosão das garantias fundamentais, é um fenómeno que se verifica um pouco por todo o mundo. Nos Estados Unidos, a administração Trump deu corpo a uma retórica securitária baseada na construção do medo e da divisão social. O regime de Javier Milei na Argentina tem promovido o desmantelamento acelerado do Estado, atacando direitos sociais básicos, enfraquecendo instituições públicas e deslegitimando vozes dissidentes. No passado recente, Jair Bolsonaro protagonizou ataques sistemáticos ao poder judiciário no Brasil, à imprensa e aos direitos das minorias, corroendo pilares fundamentais da democracia. Em diversos países europeus, cresce a criminalização da imigração, da saúde reprodutiva, da orientação sexual ou da identidade de género, enquanto se legitimam práticas que esvaziam os princípios básicos do Estado de Direito.
Trata-se, assim, de um fenómeno global e que é a expressão de uma lógica política que instrumentaliza o direito penal como mecanismo de controlo social e afirmação ideológica, tendência esta a que Portugal não está imune.
Com efeito, também no nosso país se tem assistido a um inquietante movimento de erosão dos pilares fundamentais do nosso sistema penal, promovido sob o pretexto da eficácia, do combate à corrupção e da segurança pública. Demonstrativo deste retrocesso, é a forma como se têm flexibilizado princípios outrora considerados inegociáveis. A facilidade crescente com que se impõem medidas de coação privativas da liberdade, a banalização das escutas telefónicas, a instrumentalização mediática de investigações em curso e a tendência para substituir garantias legais por soluções de conveniência política são apenas alguns reflexos de um mal maior: a normalização do direito penal do inimigo.
Esta tendência foi acompanhada pelo governo da Aliança Democrática (AD) em toda a linha, não só na retórica relativa à imigração e às famosas “perceções de segurança”, mas também através da sua Agenda anticorrupção. Este pacote, apresentado com grande pompa, propunha um leque de medidas de combate à corrupção, sendo de salientar o alargamento dos mecanismos de confisco de bens e a introdução formal da chamada “delação premiada”, medidas que se afiguram altamente problemáticas. A agenda da AD inscreve-se, assim, numa lógica de endurecimento penal e de desmantelamento gradual do modelo garantista, refletindo uma visão instrumental da justiça como meio de conquista de legitimidade política.
O regime da perda alargada, já consagrado em legislação anterior e com assinaláveis reservas por parte de muitos juristas, evolui para formas cada vez menos dependentes de uma sentença penal condenatória transitada em julgado, abrindo a porta a inversões do ónus da prova incompatíveis com o princípio da presunção de inocência. Esta prática subverte não apenas o direito penal garantista, mas também os mais elementares princípios de justiça material. Já a delação premiada, ainda que frequentemente apresentada como ferramenta de investigação eficaz, constitui uma perigosa arma de manipulação processual e um catalisador das desigualdades que subsistem no sistema judicial. Sob uma perspetiva de classe, não se pode deixar de admitir que a Justiça portuguesa continua a ser marcada por profundas desigualdades no acesso e nos resultados, penalizando mais severamente os cidadãos mais vulneráveis e menos capacitados economicamente. Nesse sentido, a delação premiada beneficiaria os mais informados e com maiores recursos, que podem melhor negociar as suas posições, instrumentalizando o sistema a seu favor. Por seu turno, os mais pobres seriam coagidos a denunciar em troca de alívios que dificilmente se concretizariam de forma equitativa. Esta medida seria, assim, mais um mecanismo de reforço das desigualdades, deixando claro que a Justiça não é igual para todos.
Esta desigualdade não é alheia à influência crescente do paradigma neoliberal sobre a política criminal. Sob o discurso da responsabilidade individual, da meritocracia e da eficiência dos mercados, o neoliberalismo promove uma conceção punitiva da justiça que passa a ser entendida como mecanismo de gestão dos riscos sociais, particularmente dos que são considerados excedentários ou marginais. Nesse contexto, a seletividade penal intensifica-se, reproduzindo e legitimando desigualdades socioeconómicas já existentes.
Em suma, estamos perante uma conjuntura em que o direito penal se converte progressivamente numa ferramenta de combate político e de gestão do medo, em detrimento da sua função essencial de guardião de garantias e direitos. A linguagem securitária, a retórica da urgência moral e a demonização pública dos suspeitos são utilizadas para gerar consenso em torno de medidas que reduzem liberdades fundamentais. Estas reformas penais deixam de responder a necessidades objetivas de justiça e passam a servir estratégias de afirmação política, criando um ambiente em que o medo — da criminalidade, da corrupção, da insegurança — é instrumentalizado para justificar o alargamento do poder punitivo do Estado.
A adoção destas políticas pelo governo da Aliança Democrática representa mais do que um simples desvio político — é um sintoma claro de um realinhamento ideológico com a retórica populista da extrema-direita, que tem prosperado à custa do medo, da desinformação e da deslegitimação sistemática das instituições democráticas. Ao apropriar-se desse vocabulário e ao implementar essas medidas, a AD não só valida essa deriva autoritária, como a inscreve no coração do sistema jurídico português.
Resistir a esta nova gramática da justiça é, por isso, mais do que uma exigência jurídica: é um imperativo político e civilizacional. É lutar para que a justiça permaneça um instrumento de emancipação e não de submissão. É defender Abril — na lei, na política, e na rua.
