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A “nova prestação social”: entre o anúncio e a realidade

Em lugar de uma “nova prestação social”, o que consta da proposta do Orçamento é um “apoio extraordinário” que revê em baixa os apoios que já existiram em 2020 e que terminam entre outubro e dezembro.

Em setembro deste ano, 42% dos desempregados inscritos nos centros de emprego não tinha acesso a subsídio de desemprego, mesmo considerando o subsídio social. Se se contabilizarem os “inativos desencorajados”, a cobertura da proteção no desemprego não chega sequer a metade dos que perderam o emprego. Os trabalhadores independentes, que não têm direito a subsídio de desemprego, podem aceder ao subsídio por cessação de atividade, mas eram menos de 400 os que tinham conseguido receber essa prestação. Por isso, a crise atual obrigou a criar um apoio extraordinário, que chegou a 160 mil recibos verdes, mas que termina este mês. Por fim, o montante dos apoios está, na esmagadora maioria dos casos, abaixo do limiar de pobreza: o valor mínimo do subsídio de desemprego não tem relação com o salário e é atualmente de 438,81 euros; o subsídio social de desemprego tem como limiar 351 euros, muito aquém do limiar de pobreza; o apoio extraordinário aos independentes tem um valor médio de 227 euros.

No debate para o Orçamento de Estado de 2021, o Bloco apresentou três propostas para responder a este problema.

Em primeiro lugar, retomar as regras do subsídio de desemprego que existiam antes dos cortes que a direita fez em 2012, que diminuíram entre 5 meses e um ano o período de concessão. Há 50 mil pessoas que têm agora subsídio de desemprego e que, em 2021, vão vê-lo terminar. Se nada for feito, podem ficar totalmente desprotegidas, até porque uma boa parte não caberá na condição de recursos dos apoios que hoje existem.

Em segundo lugar, propusemos que o subsídio social de desemprego abrisse a sua condição de recursos, retomando as regras que existiam na sua versão original, que eram da autoria de um governo do PS (as atuais são tão apertadas, que, em setembro, o subsídio social inicial não chegava a mais que 10 mil pessoas), e que se elevasse o seu valor até ao limiar de pobreza, que está nos 501 euros.

Em terceiro lugar, propusemos uma nova prestação social, com uma condição de recursos diferente da do subsídio social, em que cada membro do agregado contasse como uma pessoa (no subsídio social, as crianças contam como metade, e os adultos além do requerente contam 0,7, o que inflaciona artificialmente a contabilização dos rendimentos do agregado familiar e exclui do apoio dezenas de milhares de pessoas carenciadas). Quanto ao valor, conjugado com o rendimento do agregado, deveria garantir que ninguém ficasse abaixo do limiar de pobreza. Essa prestação funcionaria neste momento extraordinário, seria avaliada no final de 2021, seria revista e aperfeiçoada em 2022 e passaria a ser uma prestação social definitiva no sistema, a partir de 2023, eventualmente absorvendo o conjunto das prestações não contributivas.

Estas propostas foram apresentadas com cálculos rigorosos e debatidas detalhadamente com o Governo, com o qual foram feitas simulações do impacto financeiro, dos universos abrangidos e de diferentes soluções técnicas sobre o desenho da condição de recursos, dos limiares mínimos e da compatibilização com os diferentes regimes existentes na Segurança Social (o dos trabalhadores por conta de outrem, o do serviço doméstico, o dos trabalhadores independentes).

As duas primeiras propostas do Bloco foram rejeitadas pelo Governo. Assim, na proposta de Orçamento do Estado para 2021, mantêm-se os prazos de duração do subsídio de desemprego que PSD e CDS puseram na lei em 2012, desprotegendo milhares de pessoas. Mantém-se também a condição de recursos do subsídio social de desemprego, que exclui a maioria.

O Governo aceitou, no entanto, discutir um novo apoio social, na base dos princípios da “nova prestação social” que o Bloco tinha proposto no verão. Só que, na versão final que entregou no Parlamento, reflete-se a intransigência do governo na negociação e a montanha de anúncios de “convergência de objetivos” acabou por parir um rato. Em lugar de uma “nova prestação social”, o que consta da proposta do Orçamento é um “apoio extraordinário” que revê em baixa os apoios que já existiram em 2020 e que terminam entre outubro e dezembro. Os anúncios do Governo colidem com a proposta apresentada mas não era necessário muito para que não fosse assim. A prestação calibrada pelo governo é incapaz de “não deixar ninguém para trás”, porque vai excluir dezenas de milhares de pessoas; não evita a condenação de quem a receba a uma situação de pobreza, porque na generalidade dos casos as pessoas vão receber muito abaixo desse limiar; e corresponderá, para milhares de trabalhadores independentes (mas não só), a um apoio de valor menor do que aquele que tem estado disponível em 2020. Para além disso, em grande parte dos casos, durará apenas metade do ano, deixando as pessoas a descoberto na outra metade. O apoio proposto pelo Governo não serve para responder às pessoas e à crise.

Vejamos três exemplos concretos.

Alguém que hoje receba o subsídio de desemprego porque descontou os 12 meses necessários para ter direito à prestação mas que o veja terminar em janeiro de 2021, deixa de ter proteção. Basta que a pessoa que perdeu o subsídio viva em conjunto com alguém que ganhe o salário médio (860 euros). A capitação do agregado, que se calcula dividindo 860 euros por 1,7 pessoas dá 505,8 euros, o que exclui o requerente. Assim, não terá direito a qualquer apoio em 2021.

Um jovem que recebesse o salário mínimo e que tenha perdido o emprego, sem cumprir os 12 meses de descontos necessários para receber o subsídio de desemprego, será encaminhado para o novo apoio. Mas basta que esteja em casa dos pais, ou que a ela tenha voltado por força da crise e fica automaticamente de fora de qualquer apoio. Com as regras do Governo, que não aceita que um jovem que era economicamente autónomo possa constituir um agregado próprio para efeitos de contabilização de rendimento, o facto de os pais receberem o salário mínimo é suficiente para excluí-lo de qualquer apoio em 2021. Milhares de pessoas nesta situação ficarão totalmente desprotegidas com esta proposta.

Um último exemplo. Uma trabalhadora a recibos verdes que recebia 700 euros e que tenha perdido esse rendimento sob a crise, pode receber agora, em outubro de 2020, 438,81 euros no âmbito do apoio extraordinário que foi criado em abril. Só que, com o “novo apoio” que está previsto para 2021, passará a receber apenas 245 euros. Ou seja, a “nova prestação” para 2021, que será um ano particularmente difícil, é em muitos casos pior que os apoios que existiam em 2020. Para milhares de pessoas, o “novo apoio” é uma revisão em baixa do que já existe e é objetivamente uma condenação à pobreza.

O Governo anunciou que a “nova prestação” podia chegar a 170 mil pessoas e custar 450 milhões. Mas olhando para os detalhes e fazendo simulações, verifica-se que há milhares de pessoas que vão ficar de fora.

Na realidade, podemos estar perante um processo semelhante ao que já aconteceu este ano com o anúncio do “subsídio para os cuidadores informais” e com o “apoio para os trabalhadores informais”. No primeiro caso, foram inscritos no Orçamento 30 milhões para o subsídio para os cuidadores. No mês passado, por causa das regras e da condição de recursos, só 32 cuidadores em todo o país tinham acedido ao apoio! No caso dos trabalhadores informais, foram inscritos no Orçamento 38 milhões de euros, também anunciados com estrépito. Chegados a outubro, a dois meses do final desse apoio, sabe o leitor quantos trabalhadores informais o receberam? Zero. O Governo ainda nem sequer o regulamentou.

Encontremos por isso soluções. Trabalhemos afincadamente nelas, com abertura. Mas façamo-lo com rigor e sem intransigência, mais atentos ao efeito social que ao efeito publicitário.

Nota: percentagem dos desempregados inscritos nos centros de emprego com prestações de desemprego foi corrigida de 58% para 42%, às 19h31

Artigo publicado em expresso.pt a 16 de outubro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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