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Nós e os outros: Itália, Brasil e a extrema-direita

Só há uma resposta para as políticas do ódio e da pobreza que figuras como Bolsonaro, Le Pen, Ventura ou Meloni representam: uma política de esquerda consequente, que reconstrua o Estado Social e o alicerce numa economia que funcione para todos e não só para alguns.

Em outubro deste ano, assinala-se o centenário da Marcha sobre Roma, quando os esquadristas de Mussolini organizaram uma manifestação com características de golpe de Estado na capital italiana. Na sequência deste, o rei chamará Mussolini para formar governo, dando início a um dos mais sinistros períodos da história italiana. Entre 1922 e 1945, a violência reinou. As milícias fascistas, desde o início, perseguiram sindicalistas, socialistas, comunistas, democratas e opositores políticos, assassinando e torturando indiscriminadamente. As leis “fascistíssimas” impuseram o fim do Estado de direito e das liberdades fundamentais, só recuperadas com a derrota italiana na Segunda Guerra Mundial. A aliança com a Alemanha Nazi precipitou, igualmente, o envio de milhares de judeus para o sistema concentracionário nazi, nomeadamente Primo Levi, autor do grande Se Isto é um Homem.

Precisamente no mês em que se assinala este trágico centenário, vencem as eleições legislativas italianas os Fratelli D’Italia, partido de extrema-direita, liderado por Giorgia Meloni, herdeiros assumidos do ditador fascista e seus admiradores confessos. As suas propostas são alinhadas com as da extrema-direita mundial: perseguição das pessoas LGBTQIA+ e aos direitos reprodutivos das mulheres, ataque aos direitos de quem trabalha, aos mais vulneráveis e aos migrantes e deslumbre pelo autoritarismo.

Este mês, no Brasil, as esperanças de uma derrota do bolsonarismo à primeira volta saíram goradas. Lula da Silva conquistou 48,3% dos votos, ficando, por pouco, abaixo desse objetivo de higiene democrática. No dia 30, disputar-se-á a segunda volta. As sondagens, uma vez mais, revelaram uma subrepresentação do eleitorado de Bolsonaro que conseguiu muitos mais votos do que era esperado. Há que relembrar a sua governação: os 700 mil mortos durante a pandemia, o aumento brutal do desmatamento da Amazónia, os ataques aos apoios sociais aos mais pobres e aos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIA+. Os 43,3% que Bolsonaro obteve são prova de que, mesmo face a uma governação genocida, o bolsonarismo mantém uma base social firme e ampla. O combate pelas ideias da democracia e da igualdade não termina com a sua derrota nas urnas. Além disto, a nível legislativo, as eleições brasileiras trouxeram um panorama preocupante na Câmara dos Deputados e no Senado. Na primeira, o partido de Bolsonaro teve um crescimento histórico e consegue garantir a maior bancada da mesma pela primeira vez. No Senado, o seu Partido Liberal foi também o mais votado. O cenário agrava-se ainda mais quando constatamos que várias das figuras mais sinistras da administração Bolsonaro conseguiram lugares no poder legislativo. Eduardo Pazuello, antigo ministro da Saúde durante a gestão assassina da pandemia de COVID-19, foi eleito congressista. O ex-ministro do Ambiente, Ricardo Salles, acusado de permitir o desmatamento ilegal da Amazónia, foi igualmente eleito. A evangélica ultraconservadora , antiga ministra do famigerado ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves foi também eleita para o Senado. Sérgio Moro, que perseguiu Lula e foi recompensado com a pasta da Justiça no governo de Bolsonaro, tornou-se igualmente senador. Os resultados no primeiro turno destas eleições deixam-nos a esperança na vitória da alternativa democrática protagonizada por Lula da Silva, mas devem também deixar-nos preocupados. Se é verdade que a governação bolsonarista se precipita para o seu fim, sendo que Lula se mantém como o favorito em todas as sondagens, o caldo cultural e social que elegeu Bolsonaro não desaparecerá nas urnas. Ademais, os resultados desiludem todas e todos os democratas que procuravam uma rejeição mais evidente do bolsonarismo e que esperariam que esta pudesse evitar que Bolsonaro clamasse, mais tarde, a fraude eleitoral.

Em Itália, Brasil, Portugal, Espanha, França, Hungria e tantos outros sítios, as formações de extrema-direita pululam e, adaptadas às diferentes realidades locais, transmitem uma só e mesma mensagem: nós contra eles. Proteger o que é nosso contra o outro que nos assalta. Proteger o que a modernidade e o progresso nos quer levar. Manter os privilégios - dos patrões, dos homens, das pessoas brancas - contra todos os que o “ameaçarem”: trabalhadores organizados, feministas, pessoas LGBTQIA+ ou imigrantes. Por todo o lado, a direita tradicional tem um papel que, à semelhança dos anos 20 e 30 do século passado, é em tudo claudicante. Os cordões sanitários quebram-se, as alianças são colocadas em cima da mesa e efetivadas. No fim, a direita tradicional eclipsa-se face à extrema-direita. Só há uma resposta para as políticas do ódio e da pobreza que figuras como Bolsonaro, Le Pen, Ventura ou Meloni representaram: uma política de esquerda consequente, que reconstrua o Estado Social e o alicerce numa economia que funcione para todos e não só para alguns. A solidariedade é a nossa senha contra o ódio.

Artigo publicado em gerador.eu a 17 de outubro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Doutoranda e Mestre em Antropologia. A estudar colonialismo, memória e cidade. Deputada na Assembleia Municipal de Lisboa
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