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A nojeira como política é um clássico

Donald Trump está a correr contra o perigo da falência e não hesitará perante nada, mas há uma história antes dele, e aprende-se muito com ela.

Quem assistiu ao debate desta semana entre Trump e Biden pode ter sentido a surpresa, nunca se tinha chegado tão longe. Nunca? Olhe que não. A nojeira tem uma longa tradição na política norte-americana. Pode não ter sido tão exibida, Trump é de facto um protagonista excecional, e isso faz diferença, está a correr contra o perigo da falência e não hesitará perante nada, mas há uma história antes dele, e aprende-se muito com ela.

O perigo blasfemo

Nos anos 30 do século passado, o escritor Upton Sinclair tinha ganho fama, em particular com o seu livro “A Selva”, que condenava a violência da exploração na indústria das carnes. Socialista, tinha até então concorrido a vários cargos públicos, sem sucesso. Mas, em 1933, com 55 anos, apresentou um programa de combate à pobreza que entusiasmou o Partido Democrata e foi nomeado o seu candidato a governador da Califórnia.

Os republicanos contrataram uma empresa recentemente fundada, a Campaigns, Inc., de Clem Whitaker, que tinha sido jornalista de Hearst (o magnata retratado por Orson Wells em “Citizen Kane”), e Leone Baxter. Os dois criaram um estilo novo nas campanhas eleitorais. Eram minuciosos e brutais e, ao longo da sua carreira, viriam a ganhar quase todas as campanhas que dirigiram. Nesta, estabeleceram o padrão: fecharam-se três dias num hotel para ler os livros de Sinclair e definir o ataque. O resultado foi estrondoso, e os meios foram os mais sujos. Todos os dias, o “Los Angeles Times” publicava na capa uma caixa com uma citação de Sinclair. Uma delas era esta: “Sinclair sobre o casamento: A santidade do casamento... Já acreditei nisso, agora não acredito.” A frase era retirada de um personagem de um romance. E assim prosseguiu. De um livro sobre a angústia religiosa, retiraram mais frases de personagens, e Sinclair passou a receber milhares de cartas de mulheres condenando-o como blasfemo. O candidato republicano ganhou com grande margem.

Jill Lepore, na sua história dos EUA, apresenta a lista dos mandamentos da Campaigns: “Qualquer campanha precisa de um tema. Que seja simples. Nunca se deve explicar nada. Quanto mais se explica, mais difícil é conseguir apoio. A subtileza é o nosso inimigo. Palavras que puxam pelo pensamento não prestam. Simplifica, simplifica, simplifica. Levanta-se uma parede de cada vez que tentas que a senhora ou o senhor americano médio pense. Torna a coisa pessoal. Os candidatos são mais fáceis de vender do que ideias. Se a tua posição não tem oposição ou se o candidato não tem opositor, inventa-o.” Whitaker explicou esta filosofia: “O americano médio não quer ser educado; não quer desenvolver o seu espírito; nem sequer quer trabalhar, conscientemente, para ser um bom cidadão. Há dois modos de despertar o seu interesse para a nossa campanha e só dois. Podemos montar uma batalha ou montar um espetáculo. Por isso, se não houver batalha, que haja espetáculo. E, se for um bom espetáculo, a senhora ou o senhor América vão assistir.”

O perigo bolchevique

Truman, o vice-presidente de Roosevelt, substituiu-o pela sua morte em 1945 e ganhou as eleições em 1948, de forma inesperada. A vitória deu-lhe alento para propor um plano de saúde universal, baseado em contribuições obrigatórias e assegurando cuidados médicos a todos. O plano tinha apoio bipartidário, incluindo do candidato republicano que tinha sido derrotado, Warren (era baseado no plano que este havia proposto na Califórnia). Whitaker e Baxter tinham gerido a anterior campanha de Warren para governador, na presunção de que era preciso um “apelo às armas”: “Os eleitores em tempo de guerra vivem num mundo emocional que não é normal, isto tem de ser uma campanha em que fazemos com que as pessoas ouçam tambores de guerra e o fragor das bombas, uma campanha que captura a imaginação.” Pediram guerra, Warren despediu-os. Mas a vingança veio depois, quando a Associação Médica contratou a empresa para a campanha contra o plano de saúde de Warren.

Entrou na sala o perigo bolchevique: o mote foi que a “medicina política é má medicina” e que só os ditadores queriam um sistema público de saúde. O plano de Warren perdeu por um voto e, quando Truman o retomou como Presidente, a Campaigns voltou a ser contratada pela Associação Médica. É o “caminho para a socialização e o despotismo”, pelo que devemos “convencer as pessoas sobre a superioridade da medicina privada”, foi a resposta dos publicitários, que explicavam que, “basicamente, a questão é saber se continuamos um país livre, em que cada pessoa pode escolher o seu destino, ou se damos os passos finais para sermos um Estado socialista ou comunista e despótico”. Com uma campanha milionária paga pelas associações de seguros, o plano foi derrotado. Até hoje não há um serviço nacional de saúde nos EUA.

A força do engano

Whitaker e Baxter trabalharam depois na campanha vitoriosa de Eisenhower, onde conheceram Richard Nixon, candidato a vice-presidente. Ele era o principal operador das manobras de bastidores, sendo conhecido por adversários e aliados como “Tricky Dicky”. O candidato democrata, Stevenson, referiu-se a esta campanha como Nixoland, a “terra da calúnia e do medo, da insinuação, da escrita venenosa, dos telefonemas anónimos, das ameaças, do vale tudo para vencer”. Uns anos mais tarde, as gravações das conversas de Nixon na Sala Oval revelariam a dimensão destas manipulações.

Nas décadas mais recentes, ganharam dimensão os programas populistas na rádio, em que brilha a estrela de Rush Limbaugh (acusou Hillary Clinton de ser assassina e, perguntado sobre provas, alegou que o tinha lido num fax), e da televisão, em que cintilou Roger Ailes, o fundador da FOX News em 1996. Ailes foi a figura triunfante deste movimento conservador: fora consultor de campanhas de Nixon, de McConnell (hoje líder do Senado com Trump), de Reagan, de Bush, de Giuliani. Num livro, “Tu És a Mensagem”, explicou que o que importa é ser simples e instantâneo, capturar a emoção, ser agressivo. Nada mais. Como explicavam os seus antecessores da Campaign, “nunca se deve explicar nada”.

A regra é esta, o que vale é a brutalidade, criar ódio. Ailes contou, com orgulho, que tinha recomendado a George W. Bush que, se ficasse atrapalhado num debate televisivo contra o adversário democrata, que era governador de Massachusetts e tinha descriminalizado a homossexualidade, o acusasse de ser um “fornicador de animais”. Uma das estrelas da sua FOX comparou Obama a Mussolini. No entanto, Ailes viria a cair em desgraça em 2016, tendo sido despedido por assédio e violação de funcionárias da FOX. Em todo o caso, a sua herança foi Trump, que seguiu os seus conselhos: em 2012 acusou Obama de ter falsificado a certidão de nascimento e de ser estrangeiro e, já na campanha de 2016, afirmou que os mexicanos eram “violadores”. Vale tudo.

Não espanta por isso que um jornalista veterano, Walter Cronkite, tenha afirmado que “os debates televisivos são parte de uma fraude em que se tornaram as campanhas políticas do nosso tempo”. Disse-o em 1990, há 30 anos.

Artigo publicado no jornal Expresso a 3 de outubro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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