Ninguém está acima da lei, nem Lula nem o seu juiz

porJoana Mortágua

22 de julho 2017 - 11:00
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Numa sentença cheia de referências políticas, hesitações e defensivas, faltaram as provas. Não é um pormenor quando se condena alguém a nove anos e meio de prisão.

“Não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você.” Ao coroar a sentença de Lula da Silva com esta frase, o juiz Sérgio Moro condenou-se a si próprio. Ninguém pode estar acima da lei, é verdade, nem mesmo o juiz que a submete às suas convicções.

Numa sentença cheia de referências políticas, hesitações e defensivas, faltaram as provas. Não é um pormenor quando se condena alguém a nove anos e meio de prisão. Uma sentença para golpista ver, sem ordem de prisão até segunda instância, porque os “traumas” da sociedade são inevitáveis quando o povo se sente enganado.

E o povo sente-se enganado. Sobretudo a metade da população brasileira a quem o juiz Sérgio Moro quer retirar a possibilidade de votar em Lula nas eleições presidenciais. Numa sociedade completamente fraturada, a leitura política sobre o afastamento de Lula é inevitável.

A fanfarronice do superjuiz não deixa espaço para outra coisa. Moro acha-se um super-herói, vai às redes sociais agradecer o carinho popular como se fosse um jogador de futebol e até comanda escutas ilegais aos advogados de Lula.

Lula é acusado, com a falecida mulher, de ter recebido um apartamento triplex no Guarujá em troca de corrupção. Afirma a sua defesa, e não sem lógica, que o mínimo seria que se provasse que o imóvel é dele, que a OAS (empresa acusada do pagamento ilegal) o entregou a Lula ou que o próprio dele usufruiu. Nenhuma dessas provas apareceu.

Sobraram as testemunhas. Mas todas as 73 negaram ou disseram desconhecer o facto. Restou a Sérgio Moro a delação do ex-presidente da OAS como única fonte de prova para a condenação, mas só à segunda tentativa. A primeira delação, sem acusações a Lula, foi cancelada. Depois disso, Léo Pinheiro foi preso por decisão de Sérgio Moro, depôs e mudou a versão. Como a denúncia nem sequer foi homologada pelo Ministério Público, a acusação de Lula baseia-se apenas no primeiro acordo de “delação premiada informal da história”.

Tivesse a sentença sido ditada por um juiz em vez de um justicialista, tivessem aparecido as provas, tivesse o processo corrido exemplarmente ao lado de tantos outros que vagarosamente correm os tribunais. Não tivesse existido um golpe e talvez tudo fosse diferente. Num Brasil de democracia pujante, uma sentença deste género poderia ser sinal de sanidade pública.

Mas no Brasil realmente existente não há lei nem progresso, apenas uma justiça cada vez mais às ordens de um golpe ilegítimo. Uma das razões do golpe, a Lava Jato tem sido uma poderosa arma de arremesso político. Não surpreende que um golpe que começa com um impeachment sem provas queira acabar da mesma forma.

Em maio deste ano escrevi, sobre a condenação de Temer, que “para não ficar entalado entre o golpe e o justicialismo que entrega a política aos tribunais, o Brasil precisa de se reencontrar com a democracia”. O reencontro demora.

A seriedade com que analisamos o processo do golpe no Brasil impõe que apontemos a corrupção como uma das fontes de todos os males. Mas a manipulação política da justiça não faz melhor serviço à democracia. A justiça sem lei transforma-se em perseguição política e descredibiliza o sistema que tem a obrigação de, implacavelmente, julgar os culpados. Chamem-se Sérgio Moro ou Luís Inácio Lula da Silva, haja lei e que ninguém fique acima dela.

Nenhum regime está acima dos princípios democráticos. A perspetiva socialista não dispensa o Estado de Direito, não se impõe acima da lei e também não compactua com abusos. No Brasil, milhões de pessoas saíram à rua pelo direito a votarem no seu candidato. Se a sua política é merecedora de cada voto não é uma questão de justiça, mas de democracia.


Artigo publicado no jornal i, 19/7/2017

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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