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Nem mais uma

Os números são por si só aterradores. Mas o horror adensa-se quando sabemos como estes números escondem vidas inteiras de violência e sofrimento.

503 mulheres em quinze anos. Mais de 1000 crianças órfãs. 28 femícidios em 2018. Em 35 dias de 2019 já nove mulheres e uma criança morreram em contexto de violência doméstica. Este é o retrato de Portugal.

Os números são por si só aterradores. Mas o horror adensa-se quando sabemos como estes números escondem vidas inteiras de violência e sofrimento.

A violência contra as mulheres e especificamente a violência em contexto de conjugalidade revela-se como uma das formas de dominação das mulheres mais difíceis de combater e erradicar. Sustentada numa estrutura desigual de relações de poder, alimenta-se dos sentimentos de posse, ciúme e superioridade e através da violência, psicológica, verbal ou física transforma o amor em medo.

A incapacidade de protegermos estas vidas e de impedirmos que estas mulheres e crianças se transformem nos números negros do crime que mais mata em Portugal não pode continuar.

Esta incapacidade radica, não apenas na falta de meios que muitos denunciam, e bem, mas sobretudo na resistência da sociedade e especialmente da justiça em reconhecer a gravidade da violência doméstica. Na insistência em desvaloriza-la e em não compreender que essa desvalorização desprotege as vítimas e as deixa sozinhas numa luta que é sempre desigual.

A cultura de desvalorização da violência contra as mulheres, que muitos alegam não ser a norma, encontra, contudo, ampla confirmação nos argumentos conservadores e misóginos que os tribunais despejam, sentença atrás de sentença. Ou nos dados oficiais que nos dizem que 85% das denúncias de violência doméstica não chegam sequer aos tribunais, que das que chegam, apenas uma minoria resulta em condenação e que, dos agressores condenados, cerca de 90% têm pena suspensa. Ou ainda na falta de aplicação de medidas de proibição e imposição de conduta aos agressores e medidas de proteção às vítimas.

Sabemos que é preciso atuar em várias frentes. Sabemos que são precisos mais meios, maior e melhor articulação entre polícia, saúde e justiça,especialmente entre os tribunais que julgam o crime e aqueles que regulam as responsabilidades parentais. Que é precisa mais formação, educação e sensibilização. E que é preciso começar desde cedo, nas escolas, com as crianças. Sabemos tudo isso, mas também sabemos que não chega.

Temos planos nacionais e municipais, temos equipas especializadas nas polícias e nos tribunais, campanhas de sensibilização e informação, intervenção nas escolas, temos tudo isso já há mais de vinte anos e, no entanto, mulheres e crianças continuam a morrer às mãos de quem se assume seu dono, senhor e carrasco.

E por isso é preciso que se perceba de uma vez por todas que a prevenção também se faz pela punição. O sistema penal não deve ter como objetivo primário punir, mas sim dissuadir. No entanto, que mensagem se passa às vítimas e aos agressores com as sucessivas sentenças que desculpabilizam a violência sobre as mulheres, com os arquivamentos e as penas suspensas?

A resposta é óbvia. Para os agressores a mensagem é a de que podem ameaçar, perseguir, controlar, espancar e até violar, porque estão no seu direito. Afinal trata-se da SUA mulher. Umas idas a tribunal e vão à sua vida.

Às mulheres, a essas, dizemos que de nada serve denunciar. Que a justiça não tem os meios nem a inequívoca vontade de a proteger. Que apesar da exposição das crianças à violência familiar e ao clima de terror e opressão, a justiça não olha para elas enquanto vítimas. Sob a máxima do superior interesse da criança mascara-se a ideia do direito de propriedade do pai sobre os filhos, e argumenta-se - “que bom pai ele é, que nunca lhes encostou um dedo sequer”.

Se fosse consigo, até que ponto confiaria nesta justiça para garantir a sua segurança e a da sua família? Até que ponto conseguiria vencer o medo e denunciar sabendo que o agressor teria, a qualquer momento, toda a liberdade para cumprir as ameaças de uma vida inteira?

O combate tem de ser feito em várias frentes, já sabemos, mas o nosso código penal e a nossa justiça têm mesmo de mudar ou continuaremos, daqui a vinte anos, a lamentar os banhos de sangue que outrora começaram com uma história de amor.

Artigo publicado no jornal “Público” a 11 de fevereiro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
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