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Nem desisto nem insisto, ou por favor agarrem-me se não eu bato

Não fora o coronavírus a chamar a atenção para assuntos bem mais sérios, este teatro iria prolongar-se com uma candidatura que nem sai nem fica, ou em que só o próprio parece não querer aceitar que acabou.

Foi tudo escusado. Foi escusado Vitalino Canas ter sido candidato ao Tribunal Constitucional, foi escusado ter ido a votos quando havia a certeza de que ia ser chumbado, foi escusada a intempestiva intervenção da líder parlamentar do PS acusando o Parlamento de bloquear o “regular funcionamento das instituições”, assim como assim a frase mágica de quem pede ao Presidente eleições antecipadas, foi escusada aquela desculpa de que tinha “um mínimo de garantias”, quando tinha um máximo de certeza e só por erro ou impreparação levou por diante uma votação comprometida. Para amenizar a derrota, num daqueles encantadores volteios com que disfarçam os fracassos, os spin doctors puseram a correr que foi o primeiro-ministro quem assim quis queimar o candidato, numa engenhosa armadilha florentina. Tudo uma farsa.

O PS quis aprovar a trouxe-mouxe os seus candidatos, como se fosse uma simples nomeação para uma concelhia do partido, esperando obediência e mostrando fastio quando mesmo deputados da sua bancada se juntaram à maioria que achou que o topete era demasiado. O resto foi só instinto basal, como sempre, recorrendo-se à repetição do refrão dos últimos meses: se há contrariedade, ameaça-se com uma crise política ou, pelo menos, com alguma coisa assim tipo grave, visto que a democracia “está bloqueada” se Vitalino Canas não for eleito, como repete Ana Catarina Mendes.

O próprio, sugerindo as promessas que lhe fizeram, veio depois do desaire esclarecer: “não gosto de me impor a ninguém, mas também não sou de desistir.” Ou seja, não fora o coronavírus a chamar a atenção para assuntos bem mais sérios, este teatro iria prolongar-se com uma candidatura que nem sai nem fica, ou em que só o próprio parece não querer aceitar que acabou. Talvez agora este processo caia no esquecimento e os deputados passem a outro capítulo, o que seria um ato de caridade que, pelo menos, preservaria o Tribunal Constitucional e permitiria uma eleição de alguém qualificado, sem deixar que um jogo partidário de voo baixo possa infetar a nova escolha.

Fica a lição, se é que há uma lição. É que, no grosso e no retalho, o PS persiste nesta estratégia de tensão, que vem do verão de 2019 e que já levou ao fracasso da maioria absoluta, à recusa da continuação da geringonça, a um orçamento negociado in extremis e a medidas atrabiliárias de um governo em estado de precipitação, como agora propor um lobista para o Tribunal Constitucional. Imagino que na sede do partido, ou no círculo dos conselheiros da chefia, isto seja elogiado como prova de força, não desistir mas insistir. Para o país, isto lembra demasiado o universo da última maioria absoluta do PS ou da da PAF, como uma demonstração de pesporrência e um caminho para o definhamento. Melhor seria que fosse ouvida a sabedoria popular, que nos diz que bater com a cabeça na parede não costuma abrir uma porta.

Por isso, para sair do atoleiro, talvez fosse útil que o PS substituísse os pistoleiros por gente capaz de dialogar. Seria um bom motivo para uma remodelação governamental que mudasse agora o gabinete e os seus modos de gerir a política. Está a passar tempo demais para o que é tão óbvio e que só a farsa do “bloqueio da democracia” não quer compreender.

Artigo publicado em expresso.pt a 3 de março de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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