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Necropolítica e Biopoder no Império Neoliberal

No contexto da globalização neoliberal, a exceção funciona como um dispositivo jurídico que exerce a suspensão da vida e a validade da morte através de atos legislativos.

1. Estado de exceção

O estado de exceção analisado pelo filósofo Giorgio Agamben tende a tornar-se cada vez mais o paradigma de governação na política contemporânea, posicionando-se no limiar entre democracia e absolutismo. No contexto da globalização neoliberal, a exceção funciona como um dispositivo jurídico que exerce a suspensão da vida e a validade da morte através de atos legislativos.

Após os terríveis acontecimentos de 11 de setembro de 2001, George Bush autorizou a perseguição a qualquer estrangeiro minimamente suspeito, através do USA Patriot Act, esta imposição da lei marcial sobre a esfera civil teve efeitos perniciosos na conceção da “guerra ao terrorismo” e atentou deliberadamente contra a liberdade dos cidadãos, nomeadamente através da eficácia tecnológica dos regimes de controlo e vigilância, hoje expandidos planetariamente.

A infame participação de Portugal pela mão de Durão Barroso na Cimeira das Lajes, promovida pelos fanáticos do neoliberalismo em 16 de março de 2003, marcou como se sabe o início da desastrosa intervenção militar no Iraque, considerado por Noam Chomsky o pior crime deste século, mas este evento também mostrou que a nova ordem mundial seria fundamentada no aumento da violência, na exploração e dominação geo-estratégica e na progressiva liquidação da democracia. Aliás, esta estratégia de terror e medo global tem sido sistematicamente implementada desde a Guerra Fria, com a exploração emocional do holocausto nuclear, e posteriormente com a designada ameaça ubíqua do Terrorismo Islâmico.

A campanha Protect and Survive em lançada pelo governo britânico em 1970 em vários meios de comunicação, é um exemplo de uma tipologia de medidas cujo resultado é o alastrar do pânico e da consequente anomia social. Mas é de facto a história americana que mais casos óbvios fornece na reivindicação de poderes soberanos pelos presidentes, na assunção, muitas vezes ambígua, do papel de Comandante Supremo das Forças Armadas. Bush foi inexcedível na procura de uma situação de emergência como regra, em que a própria distinção entre guerra e paz se tornou cada vez mais difícil de estabelecer, desde a 2ª Guerra Mundial.

Em Portugal, o discurso de Cavaco Silva de 22 de outubro de 2015, no qual indigitou Passos Coelho a primeiro-ministro, insere-se nesta linhagem de formulação de um estado de necessidade a que o poder executivo tem a obrigação de dar remédio, numa tentativa de converter factos antijurídicos em direito e em normas jurídicas, justificando tal procedimento com ameaças ao Estado-nação e na vulgarização do dito “superior interesse nacional”. Neste discurso, o presidente da República foi de tal forma arrogante que causou uma onda de crítica unânime nos sectores políticos de esquerda.

Com base em alegorias de catástrofe, tais como: “Fora da União Europeia e do Euro o futuro de Portugal seria catastrófico (….) nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas anti-europeístas”, e noutras afirmações reacionárias que tendem a impor-se como força-de-lei: “Este é o pior momento para alterar radicalmente os fundamentos do nosso regime democrático”, Cavaco Silva, mas também Durão Barroso e diversos outros membros da direita europeia neoliberal, vêm fomentando a condição de emergência militar e de emergência económica com o objetivo estrito de manter o sistema político e financeiro que mais convém aos oligarcas na manutenção do seu fascismo e influência destrutiva.

Por outro lado, ninguém acredita na santa ingenuidade de que haja alguém, mesmo o mais casmurro conservador, que possa pensar que os “fundamento democráticos” da atual União Europeia não possam ser postos em causa, até porque de facto eles são criticados todos os dias por diversos movimentos sociais nas ruas, e pelos partidos de esquerda com representação parlamentar.

Em artigo intitulado Cavaco e a legitimidade eleitoral, Manuel Loff explicita bem o trajeto das intenções da direita portuguesa no que respeita à vontade de poder inconstitucional. Portanto, quando o presidente pretendeu ostracizar os partidos à esquerda do Partido Socialista, como sendo forças anti-europeístas, só me ocorre citar José Gabriel do blog Aventar: “A expressão “anti-europeísta” é de tal modo imbecil e vazia de sentido que só é usada por idiotas ou por quem quer manipular o outros e fazer deles idiotas. Cavaco Silva usou-a ontem. Mais uma vez”.

No fundo, o que está em causa é saber se a soberania, tal como confere a nossa Constituição, reside no povo ou se foi usurpada pelo cargo de presidente da República, como a tradição do estado de exceção o exige, e que no limite, como dizia Eichman, as palavras do Führer têm força-de-lei. Ou seja, estão os cidadãos sujeitos à anomia decretada pela usurpação de poderes ou podem e devem confiar que o parlamento de facto os representa e defende?

2. Políticas de morte

Peter Kennard (1980), Protest and Survive

Quando se correlaciona estado de exceção com nazismo, os campos de extermínio representam o cúmulo da violência destrutiva e símbolo último do poder absoluto do negativo e do poder de matar. O conceito de biopoder (M. Foucault) remete para o poder de gerir a vida e a morte, separando biologicamente os que merecem viver e os que merecem morrer, neste sentido, como refere Achille Mbembe (Necropolitics), numa economia do biopoder a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possível a função assassina do Estado. Esta função fundada num regime de identidade racista, é o que está na base dos fundamentalismos neoliberais, quer seja no seu dispositivo de guerra e destruição de populações civis, quer na vergonhosa política de morte aplicada aos migrantes e refugiados.

Tal como durante a revolução Francesa o terror foi sendo construído como uma parte complementar e necessária da política, o neoliberalismo tal como hoje o conhecemos não prescinde da sua dose de terror a vários níveis e tipologias distintas. Se como diz Mbembe, o renascimento do terror moderno está ligado à escravatura enquanto experiência do biopoder, a sua manifestação é hoje evidente na cisão entre escravos e senhores, notória na agricultura e no tráfico de seres humanos, o que implica uma tripla perda de direitos humanos: direito a ter uma residência, direito sobre o seu próprio corpo e perda do estatuto político de cidadão.

Também o trabalho precário na sua criminosa banalização, no abuso de recrutamento de estagiários não remunerados e de voluntários para serviços de limpeza, até por prestigiadas universidades portuguesas e instituições mundiais como a ONU, demonstra bem o grau de aviltamento da dignidade humana promovido pelo neoliberalismo na sua condição operacional: a liberdade dos mercados e a escravatura das pessoas.

O poder absoluto sobre a vida e a morte é uma componente fundamental da necropolítica e do biopoder sob a forma de obrigação comercial: a pessoa torna-se coisa e mercadoria, mas os mercados são sacralizados enquanto transcendência divina. O homem endividado (M. Lazzaratto) é a nova dimensão da submissão ao domínio do capital financeiro provocada pelas políticas de austeridade, onde cada vez mais indivíduos e famílias inteiras ficam aprisionados no colete de forças mantido pelo triângulo da dominação no novo império dos oligarcas da finança mundial: estado de exceção, biopoder e necropolítica.

Martha Rosler, “Photo-Op” (House Beautiful: Bringing the War Home), 2004

A guerra contemporânea, com todas as suas “bombas inteligentes” e “danos colaterias”, ao contrário da colonização imperial, não procura já ocupar os territórios mas tão somente destruí-los, tomar posse dos recursos e matérias primas mais valiosos, e tem como efeito direto levar a vida humana ao limiar da miséria e da sobrevivência (Iraque, Kosovo, Palestina, Síria,..). Mais grave ainda é que esta nova conjuntura, que dá corpo a uma máquina de guerra global, expande o exercício da violência, o direito a matar e as operações militares a mercenários e empresas privadas que operam fora do padrão do “exército regular”.

A proliferação de máquinas de guerra é uma das características que Deleuze e Guattari identificaram na correlação entre o abandono das colónias pelos impérios e a emergência da uma globalização rizomática. As máquinas de guerra continuam hoje a proliferar através da criação de milícias e grupos rebeldes que passam controlar territórios inteiros na ausência dos poderes formais de um Estado, tornando-se organizações altamente organizadas e com mecanismos implacáveis de pirataria das populações que ocupam. O caso do Daesh é um exemplo atual desta tipologia de máquina assassina originada no caos deixado pelas guerras levadas a cabo por potências ocidentais.

3. Viver a morte, morrer a vida

Para Heidegger, o Dasein é o ser-para-a-morte, i.e., o ser humano é o animal cuja liberdade para viver advém da sua consciência de poder escolher a sua própria morte. É portanto uma consciência (positiva) do humano enquanto ser vivo que antecipa a morte como possibilidade inexorável do fim. Michel Foucault, na sua crítica à sociedade disciplinar, concebe o conceito de biopoder para se referir ao difuso dispositivo técnico e político capaz de intervir sobre as características vitais da existência humana: nascimento, doença e morte. Para Negri e Hardt (Império), o biopoder é a forma operativa da produção biopolítica do Império sobre a multitude, uma forma de poder entendida, como sociedade de controlo, que regula a vida social desde o seu interior, na qual os mecanismos de comando se tornam cada vez mais “democráticos” e distribuídos pelas mentes e corpos: “o poder é agora exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação, redes de informação, etc.) (…) no objetivo de um estado de alienação independentemente do sentido da vida e do desejo de criatividade.” (p. 42).

O biopoder é então um poder que captura a vida e introduz-se na vida quotidiana, abarcando todo o corpo social para fins de controlo e manipulação, é portanto um poder que se instala desde as profundezas da consciência à superfície dos corpos, passando pelas relações sociais. No entendimento de Foucault todo o contexto biopolítico foi sendo posto ao serviço do capitalismo, não apenas no que respeita, por exemplo, ao genoma humano e às biotecnologias, mas principalmente à biodiversidade natural (sementes e alimentos) capturada por multinacionais, cuja rentabilidade provem da produção de patentes biológicas e genéticas sob o subterfúgio jurídico dos direitos de propriedade intelectual. A já denominada depopulation agenda refere-se a uma sexta extinção em massa (Holoceno) em grande medida provocada pela indústria mundial da agroquímica e dos alimentos transgénicos, nomeadamente pelo uso sistémico de inseticidas neocorticóides e de herbicidas à base de glifosato.

O controle político sobre os indivíduos não é apenas realizado através da consciência e da ideologia, mas também através do corpo biológico e do somático, ou, dito por outras palavras, pelo exercício da violência física e simbólica. Veja-se o que aconteceu com a administração das políticas de austeridade ao nível simbólico e da consciência, a intensa circulação diária de palavras-de-ordem da gramática neoliberal (economês), as parábolas em torno da dívida como pecado ancorada na ideologia do capitalismo como religião. Em Espanha a anti-democrática instauração da Ley Mordaza; na Grécia, a guerra económica e ideológica lançada pelo Eurogrupo contra o governo liderado por Tsypras.

Numa perspetiva internacional podemos observar como esse mesmo poder se exerce em praticamente todos os domínios, desde a vontade que os liberais americanos têm para definir Snowden ou Assange como terroristas, à extensão dos poderes de vigilância eletrónica sobre toda a população mundial. Em suma, todas as intervenções feitas em nome do estado de exceção, apesar de parecerem pontuais e excecionais têm uma continuidade permanente, e formam a base de legitimação da nova ordem mundial e da instituição da soberania do Império.

Na esfera da vida e da morte biológicas, as intervenções e os efeitos recessivos das políticas de austeridade em Portugal, deliberada e ideologicamente fomentadas pela coligação PSD-CDS ao longo dos últimos quatro anos, mostram como diversos grupos sociais foram afetados de diversos modos, alguns exemplos:

- Emigração coerciva: através do aumento do desemprego obrigaram a emigrar meio milhão de portugueses, 110 mil pessoas por ano em 2013 e 2014, valores só atingidos na década de 1960/70;

- No âmbitos dos serviço nacional de saúde, metade dos doentes morrem sem cuidados paliativos;

- Na Segurança Social, o novo regime de proteção social por invalidez, com entrada em vigor prevista para Janeiro de 2016, prevê a atribuição de pensões “só com morte certa”;

- Um estudo recente mostra como a austeridade é responsável por 465 suicídios de idosos em Portugal em dois anos;

- O relatório oficial do Fundo da ONU para a Infância mostra um retrocesso nos Direitos da Criança e na violação de tratados internacionais assinados pelo Estado, colocando as crianças em situações dramáticas devido à política de austeridade imposta pelo governo português.

Outros casos poderiam ser elencados, mas esta pequena amostra é suficiente para confirmar a vontade explicita de dar pancada nos portugueses, e de como a história política da direita portuguesa se encontra intimamente conectada com a produção de uma nova ordem global neoliberal fundamentada na necropolítica, no biopoder e no estado de exceção. A usurpação da soberania constitucional, a redução da democracia ao mínimo do tolerável, e a diminuição drástica das condições de vida são o resultado de uma estratégia desenhada para aumentar as desigualdades sociais e a transferência de recurso para as oligarquias financeiras, que por agora ainda dominam os fluxos planetários da vida e da morte.

Em Espanha, o novo livro de Clara Valverde, De la necropolítica neoliberal a la empatía radical (2015, Icaria / Más madera), defende a urgência de iniciativas implicadas nas políticas do comum, como antídoto contra a necropolítica e a estratégia de separação entre grupos sociais, incluídos e excluídos, entre géneros, sugerindo a necessidade de uma empatia radical com origem nos espaços e pessoas excluídos: “No funciona que los “incluidos” inviten a los excluidos a sus movimientos. Tiene que ser al revés. Los que aún se creen incluidos necesitan ir a esos espacios intersticiales en los que habita la exclusión y empezar desde ahí.” (Entrevista no eldiario.es).

Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
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