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A necessidade de lambermos o mundo

Recentemente temos vindo a assistir à utilização do vocábulo “colaborador” em vez de “trabalhador”. Esta mudança, aparentemente inofensiva, prejudica na verdade o trabalhador porque lhe retira a noção mais básica daquilo que um trabalhador faz: o trabalho.

Há já algumas semanas que tenho dado explicações de várias disciplinas, entre elas o inglês. Como decerto sabem, esta língua é ensinada nas escolas portuguesas praticamente desde o momento em que lá pomos as crianças. Durante o tempo em que estava a aprender inglês não gostava particularmente de o fazer, não percebia a importância daquilo que fazia. Com o passar do tempo no ensino obrigatório a justificação que melhor encontrei era de que esta língua permitia uma base comum de comunicação com pessoas de outros países, sendo particularmente importante em áreas como a ciência. Hoje, olhando para aquilo que me rodeia, para o curso de filosofia onde estou, para as explicações que dou, percebo que a linguagem propriamente dita tem um valor incalculável.

Porque devemos então aprender línguas estrangeiras? Pelo mesmo motivo que devemos saber dominar a nossa. A língua, mais do que aquilo que usamos para comunicar, é a nossa forma de pensar. A língua controla-nos. Na licenciatura anterior em que estive tive um professor horrível mas, e odeio dar-lhe razão, numa coisa estava certo: um aluno de física que não é capaz de atribuir designações aquilo que está a fazer, fórmulas ou métodos, pensa mal mesmo que o resultado esteja certo (o conteúdo foi este, embora dito de uma forma mais rude). Neste caso a verdade é que esta atribuição de substantivos permite a criação de esquemas mentais que se relacionam entre si e de onde logicamente se obtém uma resposta.

No livro, muitas vezes utilizado pelos liberais para atacar correntes de esquerda, o 1984, George Orwell constrói um conceito que me ajudou a perceber esta importância da linguagem: a novilíngua. O argumento é simples, o estado autoritário cria uma nova língua, mais simples por sinal, que é tão básica que constrange o pensamento de quem a usa. Em meu nome dou um exemplo: no português, tal como nas outras ramificações latinas, nós conjugamos os verbos em vários tempos e modos. Tanto é normal ouvirmos a frase “Eu comi uma maçã”, como “Eu como uma maçã” ou também como “Vou comer uma maçã”. Ora, já se eu disser “Eu comer maçã”, estamos diante uma frase dolorosa para os nossos ouvidos. Pois imaginemos que nesta nova língua não conjugávamos os verbos e, portanto, estaríamos diante deste caso. Eu poderia muito bem utilizá-lo e, a ideia que passa, é que eu realmente tenho uma relação entre o ato de comer e uma maçã mas nunca saberei como é que essa relação se processa, como acontece nos casos em português que citei antes. Esta é uma simplificação da linguagem que nos elimina a noção de tempo. Este último exemplo relaciona-se com as regras da língua, a sintaxe. No entanto também podemos ver uma nova língua no prisma dos significados, ou seja, da semântica. Neste campo, ironia das ironias, são os liberais aqueles que nos dão os melhores exemplos: Recentemente temos vindo a assistir à utilização do vocábulo “colaborador” em vez de “trabalhador”. Esta mudança, aparentemente inofensiva, prejudica na verdade o trabalhador porque lhe retira a noção mais básica daquilo que um trabalhador faz: o trabalho. Estas mudanças não são ao calhas porque a partir do momento em que nós nos esquecemos que existe uma diversidade de profissões que tem objetivos fundamentais, com competências estruturadas, com direitos assentes, mais fácil é tratarmos essas pessoas como mera mercadoria.

As línguas estrangeiras permitem saborear a realidade de formas únicas e impossíveis na nossa. Pensarmos livremente.

Sobre o/a autor(a)

Estudante do ensino secundário. Membro da Comissão Coordenadora Regional dos Açores do Bloco de Esquerda. Ativista estudantil
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