Até ontem havia como que um silêncio organizado em torno das grunhices racistas vomitadas nos estádios. O futebol era o pretexto para o exercício da obscenidade, da injúria, da exercitação de tudo o que há de porcalhão dentro da cabeça acéfala de idiotas vestidos de claques.
Havia uma normalidade completamente anormal num país em que o racismo é crime. Pancadinhas nas costas dos visados acompanhavam os uivos. Não passavam, porém, de meras censuras ínvias, coroadas por um abanar de cabeça censurador. Um ou outro comunicado condenatório surgia depois. A coisa resolvia-se assim. O jogo continuava.
É na linguagem que o pensamento se edifica. É ela que nos prende ao mundo. Com ela construímos a vida. A vida toda. As palavras não são coisas menores. Não são coisas gratuitas. Os insultos ouvidos no último domingo num estádio de futebol não são palavras infundadas. Quem disse o que disse, queria dizer exactamente aquilo que disse.
Ontem ouviu-se um não, dito pelo jogador alvo dos ultrajes.
Dizer não. Parece coisa pouca. Mas não é.
Dizer não permite-nos mostrar aos outros que existimos e estamos vivos. Um não vale mais que mil acrobacias diplomáticas. Não!
Dizer não, coloca-nos acima dos que nos apequenam e torna-nos gigantes. É lâmina de guilhotina a cortar o insulto. O não permite-nos ser todos. Deixamos de ser apenas nós, com o nosso arraial idiossincrático. Somos também os outros a quem o tiro da palavra quis atingir. Um não permite-nos tocar a vida e ser tocados por ela.
Desculpabilizar, menorizar, branquear o que se passou ontem com Marega é intolerável. E quem o fez, através de um canal televisivo onde se apresenta num exercício de mistura do deputado fascistóide com o comentador desportivo rasca, devia ser pura e simplesmente banido do ecrã. A defesa de um crime é crime. Ponto final.